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quinta-feira, 22 de abril de 2010

O DESENVOLVIMENTO MORAL SEGUNDO PIAGET

 No aspecto moral, segundo Piaget, a criança passa por uma fase pré-moral, caracterizada pela anomia, coincidindo com o "egocentrismo" infantil e que vai até aproximadamente 4 ou 5 anos. Gradualmente, a criança vai entrando na fase da moral heterônoma e caminha gradualmente para a fase autônoma.

 Piaget afima que essas fases se sucedem sem constituir estágios propriamente ditos. Vamos encontrar adultos em plena fase de anomia e muitos ainda na fase de heteronomia. Poucos conseguem pensar e agir pela sua própria cabeça, seguindo sua consciência interior.

ANOMIA

HETERONOMIA

AUTONOMIA

A : negação

NOMIA: regra, lei

A lei, a regra vem do exterior, do outro

Capacidade de governar a si mesmo

 

 Na fase de anomia, natural na criança pequena, ainda no egocentrismo, não existem regras e normas. O bebé, por exemplo, quando está com fome, chora e quer ser alimentado na hora. As necessidades básicas determinam as normas de conduta. No indivíduo adulto, caracteriza-se por aquele que não respeita as leis, pessoas, normas. 

 Na medida em que a criança cresce, ela vai percebendo que o "mundo" tem suas regras. Ela descobre isso também nas brincadeiras com as criança maiores, que são úteis para ajudá-la a entrar na fase de heteronomia. 

 Na moralidade heretónoma, os deveres são vistos como externos, impostos coercitivamente e não como obrigações elaboradas pela consciência. O Bem é visto como o cumprimento da ordem, o certo é a observância da regra que não pode ser transgredida nem relativizada por interpretações flexíveis. De certa forma, a intolerância da Igreja, por qualquer interpretação diferente da sua, referente ao Evangelho, manteve a humanidade na heteronomia moral. O bem e o certo estavam na Igreja, no Estado e não na consciência interior do indivíduo.

 A responsabilidade pelos actos é avaliada de acordo com as consequências objectivas das acções e não pelas intenções.

 O indivíduo obedece as normas por medo da punição. Na ausência da autoridade ocorre a desordem, a indisciplina.

 Na moralidade autónoma, o indivíduo adquire a consciência moral. Os deveres são cumpridos com consciência de sua necessidade e significação. Possui princípios éticos e morais. Na ausência da autoridade continua o mesmo. É responsável, auto-disciplinado e justo. A responsabilidade pelos actos é proporcional à intenção e não apenas pelas consequências do acto.

 O processo educativo deve conduzir a criança a sair de seu egocentrismo, natural nos primeiros anos, caracterizado pela anomia, e entrar gradualmente na heteronomia, encaminhando-se naturalmente para a sua própria autonomia moral e intelectual que é o objectivo final da educação moral. 

 Esse processo de descentração conduz do egocentrismo (natural na criança pequena) caracterizado pela anomia, à autonomia moral e intelectual.

 As actividades de cooperação, num ambiente de respeito mútuo, embaçado na afectividade, preservam do egoísmo e do orgulho, auxiliando a criança no longo processo de descentração, conduzindo-a gradativamente da heteronomia para a autonomia moral. Um ambiente de medo, autoritarismo, respeito unilateral tende a perpetuar a heteronomia.

 Do egocentrismo inicial a criança, gradualmente, vai "saindo" de si mesma, ampliando sua visão de mundo e percebendo que faz parte de um todo maior.

 Gradualmente, aprende a cooperar, a respeitar e a amar o próximo.

 

 

terça-feira, 20 de abril de 2010

Piaget e a consciência moral

RESUMO

Este artigo apresenta os principais resultados de uma pesquisa sobre a teoria da moral de Jean Piaget. No estudo de seus textos sobre a moral, utilizamos o método da análise estrutural. Essa análise possibilitou-nos descobrir em Recherche o seu plano inicial de pesquisa e propor uma interpretação original do significado de seu livro O julgamento moral na criança. Além disso, constatamos que ele buscou traçar o caminho que conduz o ser humano da anomia à autonomia moral. Esses resultados permitiram explicar por que a sua teoria da moral, assim como a sua teoria do conhecimento, pode ser compreendida como um kantismo evolutivo.

Piaget e a consciência moral

É verdade que Piaget dedicou a sua vida, principalmente, a responder à questão de como é possível ao homem alcançar o conhecimento (Ramozzi-Chiarottino, 1972). Mas, quando consideramos o conjunto de sua obra, podemos constatar também que ele jamais deixou de escrever sobre a questão moral, ainda que suas idéias sobre esse tema estejam dispersas e, não raras vezes, em textos insuspeitos.

Em nosso estudo sobre a moral piagetiana, partimos da afirmação de que as idéias de Piaget sobre a moralidade são inseparáveis de seu projeto epistemológico (Ducret, 1990; Freitag, 1992; Vidal, 1994). Neste artigo, apresentamos os principais resultados desse estudo: o projeto do jovem Piaget, por que ele escreveu O julgamento moral na criança e aquilo que de seu projeto inicial sobre a moral foi realizado. Além disso, explicamos por que a sua teoria sobre a moral, assim como a sua teoria do conhecimento, pode ser entendida como uma espécie de kantismo evolutivo (Piaget, 1959; Ramozzi-Chiarottino, 1984).

Estamos convencidos de que, para se compreender a obra de grandes pensadores, é preciso considerar-se o conjunto da obra e não apenas um ou outro texto ou aspecto isolado. Por essa razão retomamos a análise estrutural realizada por Ramozzi-Chiarottino (1972) e utilizamos o mesmo método para a análise dos textos escritos por Piaget sobre a moral.

Esse método requer que se estude a obra a partir de sua lógica interna. Para descobrir essa lógica, o pesquisador deve responder à seguinte questão: qual foi a intenção do autor ao planejar a sua obra? É necessário identificar e analisar os seus conceitos a fim de se encontrar uma resposta a essa pergunta. O principal objetivo de nosso estudo foi, justamente, demonstrar qual foi a intenção de Piaget no que diz respeito à moral.

Os principais resultados de nosso estudo sobre a moral piagetiana foram os seguintes: 1- a descoberta do projeto de Jean Piaget; 2- por que ele escreveu O julgamento moral da criança e 3- o caminho a ser percorrido pelo ser humano da anomia à conquista da consciência moral autônoma.

O Projeto do Jovem Piaget

O livro publicado por Piaget (1918) quando ele era ainda muito jovem foi tomado por alguns comentadores de sua obra como um texto autobiográfico. Nós entendemos, porém, que Recherche é apenas em parte, autobiográfico. Na última parte desse livro, Piaget (1918) propõe um sistema que deveria ser entendido - diz ele - como "um programa de pesquisas" (p. 148).

Embora ele tenha renunciado à reflexão solitária e decidido assentar o seu "edifício" no campo da ciência, isso não significa que ele tenha abandonado as idéias capitais de seu sistema (Ducret, 1984). Prova disso é que, muitos anos mais tarde, Piaget (1976) reconhece, ainda, nessas páginas escritas na juventude, "um esquema antecipador" de suas pesquisas ulteriores:

(...) já estava claro para mim que o estado de equilíbrio do todo e da parte correspondia a estados de consciência de natureza normativa: necessidade lógica ou obrigação moral, por oposição às formas inferiores de equilíbrio que caracterizam os estados de consciência não-normativos (...). (p. 7)

Segundo Ramozzi-Chiarottino (1998), nós podemos identificar em Recherche todos os elementos da teoria do conhecimento que Piaget construiu ao longo de sua vida: uma teoria inspirada no equilíbrio biológico e cujas leis que regem o pensamento são aquelas da lógica clássica. Mas uma leitura atenta de Recherche nos mostra também que ele aspirava propor uma teoria sobre a moral, conforme constatamos, por exemplo, na seguinte passagem: "Ora, eu pretendo que, precisando suficientemente a evolução biológica, se chega a fundar uma moral da obrigação e uma moral única, sem tergiversação possível" (Piaget, 1918, p. 174). Nós podemos perguntar o que aconteceu com essa intenção de Piaget, presente em Recherche.

Por que Piaget Escreveu o Julgamento Moral na Criança?

Sendo Piaget um cientista, ele acreditava que o sistema exposto em Recherche deveria ser submetido a um controle experimental. Assim sendo, O julgamento moral na criança pode ser entendido como a primeira tentativa de submeter as suas idéias sobre a moral a uma verificação empírica.

Piaget (1932/1992) atenta para o fato de que havia um acordo entre autores de diferentes orientações teóricas quanto ao fato de que o respeito é o sentimento fundamental da vida moral. O mesmo não ocorria, contudo, quanto as relações entre o respeito e a lei moral. Em vários textos, ele contrapõe, de um lado, Immanuel Kant e Émile Durkheim e, de outro, Pierre Bovet: para Kant e Durkheim, o respeito é conseqüência da lei moral, ou seja, é na medida em que o indivíduo obedece a lei moral que ele é respeitado; segundo Bovet, o respeito às pessoas é condição prévia da lei moral, visto que o indivíduo atinge o respeito à Lei através das pessoas. Piaget procura dirimir as divergências em torno dessa questão submetendo-a ao método genético. Nós podemos compreender, então, o seu livro O julgamento moral na criança como um estudo psicogenético sobre as relações entre o respeito e a lei moral.

No que tange a essas relações, Piaget (1928, 1930, 1932/1992) toma o partido de Bovet (1912) e atribui, explicitamente, a origem de suas pesquisas ao artigo Les conditions de l'obligation de conscience. Bovet (1910), em um trabalho anterior, já revelara sua intenção de aplicar o método da psicologia experimental ao estudo dos sentimentos morais: "Tratar-se-ia de mostrar que os fatos concretos que estão na base das construções da ética podem ser objeto de um estudo conduzido seguindo os métodos da psicologia científica." (p. 305)

O seu artigo Les conditions de l'obligation de conscience faz parte desse projeto. Bovet (1912) procurou estabelecer quais são as condições necessárias para que o sujeito sinta que deve (ou não deve) agir de uma determinada maneira. Segundo ele, duas condições são necessárias e juntas, suficientes para que surja a consciência de obrigação no sujeito: 1) que uma consigne seja dada; 2) que essa consigne seja aceita por aquele que a recebe. Ele definiu uma consigne como uma ordem ou proibição: 1) dada sem indicação precisa nem de motivos nem de sanções; 2) válida até novo aviso; 3) que diz respeito a um ato subordinado a circunstâncias exteriores que devem ser reconhecidas pelo sujeito.2 Para que uma consigne seja aceita, o seu autor deve ter prestígio ou autoridade aos olhos daquele que a recebe, ou seja, deve existir uma relação de respeito.

Poucos anos antes, Ferenczi (1909/1991) escrevera algumas belas linhas sobre por que as crianças obedecem a seus pais. Segundo ele, é porque há uma relação de amor entre a criança e seus pais que ela os obedece de bom grado.

Poder-se-ia esperar que elas considerassem as exigências de seus pais visando orientar seu comportamento e atos como uma coerção exterior, portanto uma fonte de desprazer. Com efeito, é esse o caso nos primeiros anos de vida, quando a criança só conhece satisfações auto-eróticas. Mas o aparecimento do amor objetal modifica a situação por completo. Os objetos de amor são introjetados: são mentalmente integrados ao ego. A criança ama seus pais, ou seja, identifica-se com eles, sobretudo com o do mesmo sexo ... Nessas condições, a obediência deixa de ser um desprazer... Naturalmente, essa obediência espontânea tem um limite que varia segundo os indivíduos e, quando esse limite é transposto pelas exigências dos pais, quando a pílula amarga da coerção não está envolta na doçura do amor, a criança retira prematuramente sua libido dos pais, o que pode levar a uma perturbação brutal do desenvolvimento psíquico. (Ferenczi, 1909/1991, p. 101)

Inspirado nessa idéia, Bovet (1912) define o respeito como "...uma relação sui generis de natureza afetiva, na qual o amor e o medo são, em doses diversas, os constituintes característicos". (p. 118)

Piaget (1932/1992) incorpora a concepção de Bovet (1912) e, através deste, também a idéia de Ferenczi (1909/1991). No entanto, ele percebe uma limitação na tese de Bovet: "como, se todo dever emana de personalidades superiores a ela, a criança adquirirá uma consciência autônoma?" (Piaget, 1932/1992, p. 308). Em suas pesquisas, ele busca uma resposta a essa pergunta.

Piaget (1932/1992) encontra no jogo de regras um terreno propício para o estudo da questão de como é possível a aquisição de uma consciência autônoma. As regras do jogo, como as regras morais - diz ele - "... se transmitem de geração em geração e se mantêm unicamente graças ao respeito que os indivíduos têm por elas" (p. 2). Todavia, há uma diferença essencial: enquanto as normas morais são impostas pelos adultos, as regras do jogo, pelo contrário, são elaboradas apenas pelas crianças. Para Piaget (1932/1992), o fato de que essas regras não têm um conteúdo moral propriamente dito não era relevante, visto que, neste ponto, ele estava inteiramente de acordo com Bovet (1912): "Com efeito, como Bovet mesmo, aliás, reconheceu sem cessar ... os deveres não são obrigatórios por causa de seu conteúdo, mas pelo fato de emanarem de indivíduos respeitados" (Piaget, 1932/1992, p. 311).

Em contrapartida, se o respeito é um sentimento que se desenvolve na criança em função da interação que ela estabelece com o seu meio social, interessava a Piaget (1932/1992) o tipo de relação social estabelecida. Ele distingue dois tipos de relação social: a coação social e a cooperação. Ele define a coação social como "... toda relação entre dois ou n indivíduos na qual intervém um elemento de autoridade ou de prestígio" e cooperação como "... toda relação entre dois ou n indivíduos iguais ou que acreditam ser iguais, ou seja, toda relação social na qual não intervém nenhum elemento de autoridade ou de prestígio" (Piaget, 1928/1977, pp. 225-226). Ele encontra na comunidade de pequenos jogadores - na qual a influência do mundo adulto é bastante reduzida - uma coletividade de iguais.

Os resultados de suas pesquisas sobre as regras do jogo levam-no a sustentar a tese kantiana da existência de duas morais: a moral da heteronomia e a moral da autonomia. Além disso, Piaget (1932/1992) levanta a hipótese de que existiria um processo evolutivo em direção à segunda. Essa hipótese foi corroborada mediante o estudo dos efeitos da coação social e da cooperação na formação da consciência moral do sujeito. O seu estudo sobre a mentira visou estudar os efeitos da coação social sobre a consciência moral da criança e seus resultados foram controlados com as pesquisas sobre os desajeitamentos e o roubo (capítulo II). O principal objetivo das pesquisas realizadas sobre a noção de justiça na criança foi estudar os efeitos da cooperação entre iguais (capítulo III).

Da Anomia à Autonomia Moral

Desde antes da publicação de O julgamento moral na criança, Piaget (1930) defende a idéia da existência de um paralelismo entre o desenvolvimento da lógica e da moral no ser humano. Posteriormente, no curso que ministrou na Sorbonne, Piaget (1954) estende esse paralelismo ao mostrar que as construções cognitivas caminham pari passu com a constituição dos sentimentos. Em outras palavras, ele traça um paralelo entre o desenvolvimento intelectual e o desenvolvimento da afetividade e mostra que a emergência dos sentimentos morais faz parte de um processo mais amplo: o desenvolvimento da afetividade. Já em O julgamento moral na criança nós encontramos a idéia de que as relações afetivas que se estabecem entre os seres humanos estão na origem da ação moral: "... a condição primeira da vida moral (...) é a necessidade de afeição recíproca" (Piaget, 1932/1992, p. 138). Assim como ele explicou por qual caminho o organismo humano constrói as estruturas mentais na interação incessante que estabelece com o meio físico e social, ele buscou explicar também o percurso que conduz o ser humano da anomia à autonomia moral.

Em um primeiro momento, a regra confunde-se com o hábito: há regularidades, mas a criança não as sente como obrigatórias, ou seja, não há normas propriamente ditas. Em função disso, Piaget (1932/1992) chamou de anomia a esse período do desenvolvimento moral. Não há consciência de obrigação nesse período, porque é somente por volta de 1½ - 2 anos que ocorre a primeira diferenciação eu-outrem, condição necessária para que as trocas inter-individuais, isto é, as interações sociais propriamente ditas, sejam possíveis. A idéia de Bovet (1912) foi corroborada pelo estudo sobre as regras do jogo: para que haja sentimento de obrigação é necessário que se estabeleça uma relação entre, no mínimo, dois indivíduos.

A originalidade e o interesse dessa tese [de Bovet] consistem em definir o sentimento de obrigação não do lado apenas do sujeito, mas no interior de uma relação inter-individual. Dito de outra maneira, o sentimento de obrigação não somente tem origem em uma tal relação (como em Baldwin): ele a implica constantemente. (Piaget, 1954, p. 527)

Segundo Piaget (1941/1977), no ponto de partida, o respeito é "... a expressão do valor atribuído aos indivíduos, por oposição às coisas ou aos serviços" (p. 127) e ele define o valor como "uma troca afetiva com o exterior, objeto ou pessoa" (Piaget, 1954, p.355).

O respeito unilateral é a primeira forma de respeito que aparece no desenvolvimento do ser humano. Esse sentimento constitui-se nas relações de coação social, cujo protótipo é a relação estabelecida entre a criança e seus pais ou com outros adultos significativos para ela. A obediência tem origem nesse tipo de relação. A criança atribui um valor absoluto às normas, opiniões e valores desses adultos. Ela imita os exemplos que eles lhe dão e adota a sua escala de valores. Todavia, Piaget (1932/1992) constatou que a obediência conduz a uma atitude paradoxal: o sujeito considera a regra como sagrada e imutável, mas, na prática, ele não a segue. Ele denominou "realismo moral" a tendência da criança (e do adulto que permanece criança) a considerar os deveres como exteriores ao indivíduo, a seguir as normas ad litteram, sem compreender o seu espírito, e a julgar a gravidade de uma falta em função do resultado do ato ou do caráter material do ato e não em função da intenção do agente. O realismo moral é produzido pela conjunção do egocentrismo com a coação social.

Vários comentadores da teoria piagetiana não entenderam que, do ponto de vista do desenvolvimento moral, o respeito unilateral é essencial; outros, confundiram respeito unilateral e desrespeito. Mas por que o respeito unilateral é fundamental para o desenvolvimento moral do ser humano? Porque é "no quadro preparado" pelo respeito unilateral que formas superiores de respeito se tornam possíveis. Em outras palavras, o respeito unilateral é condição necessária (mas não suficiente) para que se construam outras formas de respeito. Além disso, se os adultos impõem à criança certos valores como devendo ser respeitados, ela pode compartilhar os valores de sua cultura e, mais tarde, organizar a sua própria tábua de valores.

As pesquisas que Piaget (1932/1992) realizou sobre os efeitos da cooperação entre iguais sobre a consciência moral da criança mostraram-lhe que, graças a esse tipo de relação social, um outro tipo de respeito pode constituir-se: o respeito mútuo. Há respeito mútuo quando os indivíduos se atribuem reciprocamente valores equivalentes. Em um primeiro momento, esse tipo de relação é possível entre aqueles que compartilham uma mesma escala de valores (as classes de co-valorisant).

A relação de cooperação impõe apenas a norma de reciprocidade que obriga cada um a se colocar mentalmente no lugar do outro. Em função disso, a atitude da criança em relação às regras muda: 1) a regra não é mais sagrada e imutável; ela torna-se o produto contingente da vontade coletiva; 2) a criança compreende a diferença entre uma regra e uma lei e que nem sempre a regra é justa; 3) ela admite, então, que a modificação da regra não significa, necessariamente, uma transgressão. Dito de outra forma, o sujeito descobre a sua capacidade de instituir normas. Está dado o primeiro passo em direção à conquista da consciência moral autônoma.

Contudo, se a reciprocidade fosse possível apenas entre os indivíduos que compartilham os mesmos gostos, opiniões e valores, o ser humano ficaria restrito às classes de co-valorisants. Eis por que Piaget (1941/1977) estabelece a diferença entre a reciprocidade espontânea - típica das relações de amizade - e a reciprocidade normativa, na qual a substituição recíproca dos pontos de vista torna-se uma obrigação. Em suas pesquisas empíricas, Piaget (1932/1992) não foi além das relações de simpatia, regidas pela reciprocidade espontânea, mas já nesse momento ele deixa claro que tais relações estão fora da esfera moral: "quanto à simpatia, não reveste, aos olhos da consciência, nada de moral por si mesma: não basta ser sensível para ser bom" (p. 315).

No entanto, ele considera a reciprocidade espontânea condição necessária para que a reciprocidade normativa de ordem moral se torne possível. Por que a reciprocidade se torna obrigatória? Porque "o respeito mútuo implica a necessidade da não-contradição moral: não se pode, ao mesmo tempo, valorizar o seu parceiro e agir de modo a ser desvalorizado por ele" (Piaget, 1954, p. 535). Eis aquilo que Piaget (1944/1977) considera "a verdade essencial da tese kantiana":

...Uma norma moral adotada por um indivíduo em relação a um outro não pode ser contraditória em relação àquelas que ele aplica a um terceiro, etc, nem em relação àquelas que ele gostaria que se observasse em relação a ele próprio. Tal é mesmo a significação essencial do universal moral: não é necessariamente a regra 'geral' (sabe-se, aliás, que em lógica o universal e o geral, de modo algum, coincidem), mas a coerência interna das condutas, a reciprocidade. (Piaget, 1944/1977, p. 199)

Aquele que não compreende o princípio de não-contradição não é, portanto, capaz de ter um comportamento ético, visto que ele não tem as condições a priori para sê-lo. Segundo a teoria piagetiana, esse princípio é construído graças as trocas que o sujeito estabelece com o meio e, do ponto de vista psicogenético, ele aparece, ao mesmo tempo, no pensamento e na ação: o primeiro torna-se lógico e a segunda, moral.

A substituição recíproca de pontos de vista é a condição que define a reciprocidade normativa de ordem moral. Respeitar o outro consiste, então, em atribuir à sua escala de valores um valor equivalente ao da sua própria escala. Isso não significa, absolutamente, adotar a escala de valores do outro, pois, nesse caso, não importa o conteúdo dos valores ou convicções de cada um, mas sim o fato de se ter uma escala de valores. A própria pessoa, então, reveste-se de um valor moral (Piaget, 1941/1977).

Graças a constituição da vontade, o indivíduo pode superar seus desejos imediatos e a conservação dos valores propriamente dita torna-se possível. O exercício da vontade manifesta-se no conflito entre duas tendências, por exemplo, como no caso em que se vacila entre um prazer tentador e um dever. Quando o dever, momentaneamente, esmorece diante do desejo, a vontade restabelece a ordem dos valores. Dessa forma, é possível que a tendência, inicialmente, mais fraca torne-se a mais forte. Piaget (1954, 1964/1989) comparou a vontade à operação lógica. Segundo ele, a vontade equivale, no plano afetivo, às operações, no plano cognitivo: a capacidade operatória liberta o ser humano das ilusões perceptivas; a vontade, dos desejos e interesses imediatos, o que lhe permite estabelecer fins prioritários a longo prazo, ou seja, construir um projeto de vida. Mais tarde, o pensamento formal abre novas possibilidades: ao mesmo tempo que o sujeito se torna capaz de raciocinar sobre hipóteses, os fins de sua ação ultrapassam as fronteiras do real, dando origem a Valores (ideais), tais como a igualdade, a justiça, a solidariedade, a liberdade...

A capacidade de ser normativo, a constituição da vontade e a construção de Valores possibilitam a formação completa da personalidade. Podemos falar em personalidade, no sentido piagetiano, a partir do momento em que o indivíduo elabora um projeto de vida, quando ele incarna um ideal. A personalidade é um instrumento, ao mesmo tempo, de autodisciplina e de cooperação com os outros: o eu torna-se personalidade, na medida em que renuncia a si mesmo, inserindo o seu ponto de vista entre os outros, e se curva às normas da reciprocidade.

Segundo Piaget (1933/1977), a personalidade autônoma é "o produto mais refinado da socialização" (p. 245). Por quê? Porque - entendemos nós - é somente em uma relação de respeito mútuo entre personalidades autônomas que é possível, simultaneamente, a diversidade e a igualdade. Cabe lembrar que ele sempre esteve preocupado com as possibilidades da espécie humana e não com a concretização dessas possibilidades. Da mesma forma que nem todo o indivíduo atinge o pensamento formal, nem todos chegam a formar uma personalidade autônoma; pelo contrário, "... a consciência adulta autônoma é um produto social recente e excepcional" (Piaget, 1944/1977, p. 186).



Considerações Finais

Ramozzi-Chiarottino (1984) chamou atenção para o fato de que o próprio Piaget (1959) considerava a sua teoria do conhecimento como um kantismo evolutivo. Os resultados de nosso estudo indicam que também a sua teoria sobre a moral pode ser entendida como um kantismo evolutivo. Para Kant, todo ser humano é capaz de agir eticamente; para Piaget, todo o ser humano pode tornar-se capaz de ação moral, graças às trocas que estabelece com o meio.

Com efeito, é essencial compreender que, se a criança traz consigo todos os elementos necessários à elaboração de uma consciência moral ou 'razão prática', como de uma consciência intelectual ou razão, simplesmente, nem uma nem outra são dadas prontas no ponto de partida da evolução mental e uma e outra se elaboram em estreita conexão com o meio social: as relações da criança com os indivíduos dos quais ela depende serão, portanto, propriamente falando, formadoras, e não se limitarão, como geralmente se acredita, a exercer influências mais ou menos profundas, mas de alguma maneira acidentais em relação à própria construção das realidades morais elementares. (Piaget, 1972/1988, p. 95)

No sistema de Kant, a problemática moral é essencial. Para o filósofo, parece que a sua monumental Crítica da Razão Pura era apenas um trabalho preliminar.

Em vez de todas as considerações, cujo competente desenvolvimento constitui, de fato, a dignidade própria da filosofia, ocupar-nos-emos agora de tarefa menos brilhante, mas não menos meritória, que é a de aplainar e consolidar o terreno para o majestoso edifício da moral, onde se encontra toda a espécie de galerias de toupeira, que a razão, em busca de tesouros, escavou sem proveito, apesar de suas boas intenções e que ameaçam a solidez dessa construção. (Kant, 1787/1989, p. 312)

Piaget, parece-nos, planejara seguir os passos de Kant. Em Recherche, ele escreve que Sébastien (que é ele mesmo) "... acreditara ser possível uma filosofia do valor puro, um pouco como aquela da Razão prática, e ele a tinha reservado para coroar o seu edifício" (Piaget, 1918, p. 100). Ou seja, após explicar como é possível ao homem alcançar o conhecimento, ele estaria apto a propor a sua ética. Essa era a intenção de Piaget.

Segundo Ramozzi-Chiarottino (1998), a teoria do conhecimento esboçada em Recherche tornou-se, pouco a pouco, uma teoria científica sobre o psiquismo humano quando este busca explicar o mundo. Além de mostrar por qual caminho o organismo humano constrói as estruturas mentais - estruturas orgânicas específicas para o ato do conhecimento - na interação com o meio físico e social, Piaget construiu modelos abstratos para explicar o funcionamento dessas estruturas: a lógica operatória e a implicação significante. "Em um primeiro momento, Piaget diz que toma a lógica como um modelo descritivo daquilo que ele observou. Em um segundo momento, ele criará um modelo explicativo do raciocínio das crianças, que obedece às regras da lógica,..." (Ramozzi-Chiarottino, 1998, p. 337).

Em seu Essai sur la théorie des valeurs qualitatives en sociologie statique, Piaget (1941/1977) defende a utilização de "modelos abstratos" para exprimir em termos mais precisos a troca de valores, valendo-se de uma "axiomática de ordem logística" como ele o fizera no estudo do pensamento. Isso nos faz pensar que ele aspirou, além de explicar como a partir do mundo amoral da criança pequena é possível ao homem agir eticamente (Freitas, 1999), estender o domínio de aplicação dos modelos lógico-matemáticos e, dessa forma, talvez, criar uma teoria científica da consciência moral "sem tergiversação possível".

Referências

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segunda-feira, 19 de abril de 2010

O ENSINO DOS VALORES EM KOHLBERG

A Vida
Lawrence Kohlberg doutorou-se em Psicologia na Universidade de Chicago, em 1958, com uma Tese de Doutoramento sobre o Raciocínio Moral em Rapazes Adolescentes. Antes de se doutorar, Kohlberg ofereceu-se como voluntário para integrar a tripulação de um navio mercante norte-americano que conduziu ao novo Estado de Israel dezenas de judeus, recém-libertados dos campos de concentração nazis. A experiência na construção do novo Estado de Israel e o contacto com os campos de extermínio nazis seriam acontecimentos marcantes na sua vida. De origem judaica, Kohlberg aderiu, bastante cedo, a uma ética humanista, de influência kantiana. Na psicologia, a sua maior influência foi a obra de Piaget, em particular, o livro Le Jugement Morale Chez les Enfants, que leu enquanto estudante universitário. Professor de Psicologia do Desenvolvimento na Graduate School of Education da Harvard University, Kohlberg fundou e dirigiu, durante vários anos, o Center for Moral Education. Morreu em 1987.

A Obra
Lawrence Kohlberg dedicou toda a sua vida adulta ao estudo do desenvolvimento moral. Grande parte dos seus estudos foram publicados inicialmente em revistas científicas e, mais tarde, foram reunidos em dois volumes, de cerca de 500 páginas cada, publicados, em 1981 e 1983, na Harper and Row, com o título de Essays on Moral Development I e II- The Philosophy of Moral Development and The Psychology of Moral Development. Dos seus inúmeros artigos publicados em revistas, é possível destacar os seguintes: "The Child as Moral Philosopher", Psychology Today, Setembro de 1968, 25-30; "Moral Education and the New Social Studies", Social Education, XXXVII, 5, 1973, 369-75; "Moral Education in the Schools: A Developmental View", School Review, LXXIV, 1, 1996, 1-29. Muitos dos seus estudos foram publicados em obras colectivas, tais como: "The Moral Atmosphere of the Schools", in Readings in Moral Education, ed. Peter Scharf, Winston Press 1978; "Educating for a Just Society: An Updated and Revised Statement", in Moral Development, Moral Education and Kohlberg, ed. Brenda Munsey, Religious Education Press1980; "Revisions in the Theory and Practice of Moral Development", in New Directions for Child Development: Moral Education, nº 2, ed. William Damon, Jossey Bass, 1978; "The relationship of Moral Education to the Broader Field of Value Education", in Values Education: Theories, Practice, Problems, Prospects, ed. J.Meyer, B. Burnham e J. Cholvat, Wilfid Laurier University Press, 1975. Em Portugal, a teoria de Kohlberg tem conhecido um interesse crescente nos meios académicos. Orlando Lourenço, professor de Psicologia do Desenvolvimento na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação e Júlia Oliveira-Formosinho, docente de Educação de Infância no Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho têm sido os autores portugueses que mais têm publicado sobre Desenvolvimento e Educação Moral, no quadro da teoria de Kohlberg. Das suas inúmeras obras, destaco as seguintes: Orlando Lourenço. Psicologia do desenvolvimento Moral - Teoria, Dados e Implicações. Livraria Almedina.1992; Orlando Lourenço. Educar Hoje Crianças para o Amanhã. Porto Editora. 1996; Júlia Oliveira-Formosinho e outros. Educação Pré-escolar - A Construção Social da Moralidade. Texto Editora. 1996; Júlia Oliveira Formosinho e outros. Modelos de Educação de Infância. Porto Editora. 1996. A teoria de Kohlberg tem sido usada como enquadramento teórico, em várias Teses de Mestrado e de Doutoramento, apresentadas em Universidades portuguesas, nas últimas duas décadas. A Tese de Doutoramento de Orlando Lourenço foi, a esse nível um trabalho pioneiro: Orlando Lourenço (1988). Altruísmo: Generosidade ou Inteligência Sócio-cognitiva? Lisboa. INIC. Este autor tem vindo a publicar uma obra vasta e inovadora que pretende constituir-se como um desenvolvimento da teoria de Kohlberg. Uma grande parte dos seus estudos estão publicados nas revistas Análise Psicológica, Cadernos de Consulta Psicológica, Psychologica e Revista Portuguesa de Educação.

A Teoria da Educação Moral
Lawrence Kohlberg é o nome mais importante deste século no âmbito da educação moral. A sua investigação domina praticamente todos os debates sobre educação moral no mundo universitário e a sua teoria é presença constante em revistas de educação A sua investigação influenciou não apenas o mundo da educação, mas também da justiça. O reconhecimento de Kohlberg surgiu nos anos 80, embora os seus trabalhos fossem conhecidos e debatidos no mundo restrito dos académicos que se dedicavam ao estudo do desenvolvimento moral. De certa forma, o seu reconhecimento e popularidade constituiu uma resposta ao mal estar causado pela ineficácia do modelo curricular da clarificação de valores, tão em voga durante os anos 60 e 70. Por outro lado, a sua teoria abriu uma porta de esperança para os que vêem a sociedade norte-americana e as sociedades europeias ameaçadas pela corrupção, criminalidade e crescente egoísmo social. O interesse pela teoria de Kohlberg deve-se, também, à seriedade e à monumentalidade do trabalho de investigação conduzido por ele ao longo de três décadas, sem nunca se desviar do seu objectivo central: o estudo do desenvolvimento moral e de uma abordagem à educação moral preocupada com a questão da justiça. Nessa caminhada, Kohlberg soube, como poucos, associar os contributos da psicologia do desenvolvimento, em particular dos trabalhos de Piaget, da filosofia moral, nomeadamente o pensamento de Kant e da sociologia política, com particular destaque para o liberalismo social de John Rawls. Psicologicamente, Kohlberg afastou-se das influências psicanalítica e comportamentalista, representadas ao mais alto nível por Freud e Skinner, procurando as suas raízes na psicologia cognitivista de inspiração piagetiana. Filosoficamente, Kohlberg recusou a influência da filosofia analítica, procurando um retorno à filosofia crítica de inspiração kantiana. Sociologicamente, reagiu à influência do relativismo moral, procurando justificações para a defesa de uma ética universal, independente dos condicionalismos sociais e culturais. Kohlberg iniciou a sua investigação sobre desenvolvimento moral em crianças e adolescentes, com a apresentação da sua Tese de Doutoramento, na Universidade de Chicago, em 1958. Daí até à sua morte, em 1987, nunca mais abandonou o estudo do desenvolvimento e da educação moral. Lawrence Kohlberg e os seus colaboradores, ao longo de 30 anos, nunca deixaram de colocar novas hipóteses, reexaminaram dados anteriores, fizeram revisões dos estudos e responderam às inúmeras críticas vindas, sobretudo, de teorias não cognitivistas do desenvolvimento moral. A bibliografia de Kohlberg foi, durante muitos anos, disponível apenas em séries monográficas e artigos de revistas científicas. Nos anos 80, esses estudos foram reunidos em dois volumes com cerca de 500 páginas cada um, com os títulos de Essays on Moral Development I -The Psychology of Moral Development e Essays on Moral Development II - The Philosophy of Moral Development. Para além dos textos originais de Kohlberg, existe uma enorme quantidade de literatura sobre a teoria de Kohlberg, sobretudo apresentações, comentários, críticas e desenvolvimentos. As revistas The Journal of Moral Education e Moral Education Forum dedicam, há longos anos, números temáticos sobre os desenvolvimentos da teoria de Kohlberg, bem como sobre as aplicações curriculares da sua teoria. A literatura sobre educação moral tem apelidado a teoria de Kohlberg de cognitivo-desenvolvimentista, construtivista e interaccionista. Kohlberg e colaboradores têm afirmado, frequentemente, as influências de Sócrates, Platão, Kant, Rawls, Dewey e Piaget. Nos fundamentos filosóficos, a teoria de Kohlberg deve muito ao pensamento de Sócrates, Platão e Kant. Nos fundamentos psicológicos, a sua dívida é enorme para com Piaget. Nos fundamentos sociais, políticos e educacionais, a sua dívida é grande para com Dewey e Rawls.
O interaccionismo social da teoria da educação moral de Kohlberg e, em particular, a abordagem comunidade justa, é influenciada pela teoria educacional de John Dewey, nomeadamente o livro Educação e Democracia. Essa dívida foi publicamente explicitada por Kohlberg no artigo Development as the Aim of Education: The Dewey View, no qual descreve analisa três grandes teorias educacionais, o romantismo (Rousseau, Freud e Mill), a transmissão cultural (Durkheim) e o progressismo (Dewey). Kohlberg rejeita quer o individualismo romântico quer o colectivismo da transmissão cultural, propondo uma teoria que estabeleça uma síntese criativa entre o individual e o social na educação, baseada na noção de interacção e interdependência entre o organismo e o ambiente, entre a pessoa e o meio, entre o sujeito e o objecto, à boa maneira de Jean Piaget. Epistemologicamente, Kohlberg assume-se como um continuador de Piaget, rejeitando a noção de que o conhecimento seja o produto da cultura ou do inatismo. Ao invés, o conhecimento constrói-se a partir da interacção do sujeito com o objecto, do organismo com o meio, não fazendo sentido algum a separação de um do outro. Esta ligação íntima entre o individual e o social assume uma lugar central na moral de Kohlberg. A justiça surge como o expoente máximo dessa ligação, porque pressupõe que o indivíduo seja capaz de equilibrar os seus interesses e pontos de vista com o os interesses mais gerais da sociedade. A partir dos anos 70, com o início do seu envolvimento na criação de programas curriculares de educação moral, em cenários de escolas secundárias, Kohlberg passou a acentuar mais o carácter social da moralidade, aproximando-se de alguns aspectos da moralidade durkheimiana e dos programas educativos postos em prática em alguns kibbutz israelitas. Esse movimento levou Kohlberg a dar cada vez mais importância ao desenvolvimento de um estádio 4 da moralidade e ao papel da escola e do professor na promoção do desenvolvimento moral. O maior contributo de Kohlberg para o estudo do desenvolvimento moral foi, sem dúvida, a sua teorias dos estádios do desenvolvimento moral. A melhor forma de apresentar essa teoria é recorrendo a um quadro explicativo.
Estádio 1. Orientação pela obediência e punição. deferência egocêntrica face ao poder e à autoridade.
Estádio 2. Estádio da individualidade instrumental. Orientação egoísta. A acção correcta é aquela que satisfaz as necessidades do indivíduo e apenas ocasionalmente dos outros. Igualitarismo radical.
Estádio 3. Orientação bom rapaz, linda menina. Orientação para a aprovação e para agradar aos outros. Conformidade aos estereótipos sociais.
Estádio 4. Orientação para a manutenção da ordem e da autoridade. Respeito pela autoridade e pelas expectativas que a sociedade deposita em nós.
Estádio 5. Orientação contratual legalista. O dever é definido em termos de contrato. deferência para com o bem estar dos outros e pelo cumprimento dos contratos.
Estádio 6. Orientação pelos princípios éticos. A acção é conforme a princípios universais. Primado da consciência individual e pelo cumprimento do dever.
Os estádios 1 e 2 agrupam-se no nível pré-convencional.
Para o estádio 1, o certo é a obediência cega às regras e à autoridade, de forma a evitar a punição. O que está certo é evitar a violação das regras e evitar danos físicos aos outros e à propriedade. As razões para fazer o que está certo é evitar a punição e os castigos. A criança neste estádio assume um ponto de vista meramente egocêntrico. Não considera os interesses dos outros e não relaciona vários pontos de vista em simultâneo.
Para o estádio 2, o certo é a satisfação das nossas necessidades. O que está certo é seguir as regras quando elas nos servem. O certo é a satisfação dos nossos interesses e necessidades. O certo é deixar os outros fazerem o mesmo. Neste estádio, a criança reconhece que os outros também têm interesses. A criança, neste estádio, assume uma perspectiva concreta individualista. Separa os seus interesses dos interesses dos outros. Os conflitos de interesses resolvem-se dando a todos uma parte igual.
Os estádios 3 e 4 agrupam-se no nível convencional.
Para o estádio 3, o certo é ser simpático, leal e digno de confiança. O adolescente, neste estádio, preocupa-se com as necessidades dos outros e procura cumprir as regras e as normas. O que está certo é viver de acordo com aquilo que os outros esperam de nós e fazer aquilo que os outros esperam que nós façamos. O adolescente, neste estádio, mostra gratidão e apreço pelas autoridades e procura ser digno dessa confiança. O adolescente, neste estádio, respeita a regra de ouro, isto é, reconhece a importância da reciprocidade e trata bem os outros porque espera que os outros também o tratem bem. Este estádio tem em conta tanto a perspectiva do indivíduo como a perspectiva dos outros. Uma pessoa, neste estádio, sabe partilhar sentimentos e sabe relacionar diferentes pontos de vista em simultâneo. É capaz de "calçar os sapatos dos outros", isto é, sabe colocar-se no papel dos outros.
Para o estádio 4, o certo é cumprir o dever para com a sociedade, manter a ordem social e velar pelo bem estar de todos. As leis são para serem cumpridas e a sociedade espera que cada um dê o seu contributo para o bem estar geral. A razão para fazer o que está certo é ajudar a manter a ordem social e o bom funcionamento das instituições. Este estádio distingue os pontos de vista da sociedade dos pontos de vista dos grupos e dos indivíduos. Uma pessoa, neste estádio, assume o ponto de vista do sistema e considera as relações interpessoais em termos do seu lugar no sistema.
Os estádios 5 e 6 agrupam-se mo nível pós-convencional.
Para o estádio 5, a escolha moral é baseada nos direitos básicos, nos contratos legais e nos valores morais, mesmo quando há conflito com as leis ou as regras do grupo. O que está certo é ter consciência que as pessoas nem sempre partilham os mesmos valores e que, por vezes, as leis e as regras do grupo são injustas e não merecem, portanto, ser obedecidas. A razão para fazer o que está certo reside na necessidade de respeitar os contratos e os direitos dos outros. Neste estádio, a pessoa toma decisões ma base do maior bem para o maior número. Neste estádio, há verdades mais importantes que os interesses da sociedade. A pessoa, neste estádio, considera o ponto de vista legal e o ponto de vista dos outros e procura reconhecer o conflito entre eles, de forma a fazer escolhas que tragam o maior bem para o maior número.
Para o estádio 6, o certo é o que obedece aos princípios éticos universais. As leis ou os contratos e acordos sociais são válidos sempre que respeitam esses princípios. Quando a lei viola os princípios éticos, a pessoa deve agir de acordo com os princípios éticos, ainda que tenha de violar as leis. Os princípios éticos relacionam-se coma noção de justiça, dignidade humana, direitos humanos e igualdade de direitos. A razão para fazer o que está certo é que a pessoa reconhece a validade dos princípios e procura cumpri-los. Este estádio reconhece que os princípios de justiça não são apenas produtos da sociedade para resolver eficazmente os conflitos, mas sobretudo o reflexo de uma ordem natural que reside tanto na natureza humana como na ordem cósmica. Estes princípios são eternos e universais, no sentido de que são um produto do desenvolvimento da natureza humana. Estão, por isso, presentes em todas as sociedades e em todas as culturas. A interacção do sujeito com o meio pode ser necessária para revelar o princípio da justiça, mas não é essa interacção que cria o princípio. O princípio ético é prévio à sociedade. É uma categoria a priori no sentido kantiano.
A teoria de Kohlberg é um dos exemplos mais significativos de uma teoria moral centrada na defesa dos princípios éticos e preocupada com o desenvolvimento do raciocínio moral, em vez da mera defesa das convenções sociais, regras de conduta e leis. O que é que Kohlberg entende por princípio ético? Antes de mais, é um procedimento ou um conjunto de orientações para habilitar a pessoa ao confronto de escolhas morais alternativas. Constitui uma forma universal de tomada de decisões morais, com base na lógica formal e na razão. O princípio ético constitui uma padrão universal que orienta a reflexão sobre questões morais. Por outro lado, o princípio ético refere-se a uma forma mais avançada e mais madura de encarar o conceito de justiça, o qual, no entender de Kohlberg, define o ponto de vista moral. De uma certa forma, o princípio ético significa duas coisas: um procedimento racional para orientar a reflexão sobre questões morais e um conteúdo identificável com o conceito de justiça. O que é que Kohlberg entende por justiça? A justiça é o mesmo que igualdade e universalidade dos direitos humanos. A justiça é tratar, com igualdade, todas as pessoas, independentemente da sua posição social. É tratar cada pessoa como um fim e não como um meio. Assemelha-se ao imperativo categórico de Kant. É o mesmo que o respeito pela dignidade humana e pressupõe o respeito pela reciprocidade. A justiça pressupõe a preocupação pelo bem estar dos outros. De uma certa forma é o mesmo que o maior bem para o maior número. Kohlberg rejeita quer a ideia de que a moralidade é a expressão das normas do grupo quer a ideia de que a moralidade é uma questão de gosto e de preferência individual. Os princípios éticos não derivam da sociedade ou da cultura. Eles são autónomos, fazem parte da natureza humana e estão inscritos na ordem cósmica.
Qual é o papel da cognição na teoria de Kohlberg? Conhecida como teoria cognitivo-desenvolvimentista, a teoria de Kohlberg concede um lugar central à cognição no processo de desenvolvimento moral. Alguns críticos acusam-no de conceder uma demasiada importância à cognição, desvalorizando o papel das emoções, dos sentimentos e dos hábitos. O processo de raciocínio moral tem várias características: "é interactivo, isto é, o pensamento moral significa a aplicação dos processos e das operações lógicas por um indivíduo a certos problemas, experiências e situações que existem no mundo. O pensamento moral significa aplicar certos princípios e práticas a estruturas concretas e a dilemas. Estes procedimentos estão intimamente ligados ao conceito de justiça e pensar moral significa considerar as potenciais escolhas que maximizarão a preocupação pelos outros. Este procedimento deverá ser imparcial e não poderá ser afectado pelos preconceitos pessoais ou pressões de grupo" (Chazan, 1985, 78). Kohlberg defende que o desenvolvimento moral deve ser visto em termos de desenvolvimento de ceras formas ou estruturas de pensamento e não em termos de transmissão de conteúdos morais ou de formas de conduta. O hábito não tem, na sua teoria, qualquer papel especial. O conteúdo moral e a acção têm pouco a ver com o estádio do desenvolvimento moral. A complexidade do raciocínio e o nível da justificação para as escolhas morais são as componentes mais importantes no processo de atribuição de um estádio do desenvolvimento moral a uma pessoa. Kohlberg sempre criticou os modelos curriculares preocupados com a transmissão das virtudes morais, apelidando-os de "caixinha das virtudes". Em vez da ênfase nos conteúdos e nos comportamentos, a teoria de Kohlberg centra-se na forma, na estrutura e no processo de pensamento, o qual é tanto mais adequadamente moral quanto mais imparcial e universal forem os juízos produzidos. A teoria de Kohlberg afasta-se da noção aristotélica da virtude. Para Kohlberg, ao contrário de Aristóteles, não é possível separar a dimensão intelectual da dimensão comportamental. Kohlberg insere-se na tradição socrática e platónica que assume que "aquele que conhece o bem, praticará o bem " e que a imoralidade é uma questão de ignorância. A crença de que a pessoa tende a agir de acordo com os seus juízos morais é central na teoria da educação de Kohlberg e é essa correspondência que o obriga a desvalorizar uma educação preocupada com o desenvolvimento do carácter e com os comportamentos e acções morais. Todas as intervenções de Kohlberg e dos seus colaboradores, relacionadas com a criação de programas educativos em escolas secundárias, nomeadamente os programas "schools within a school" e "cluster school", no final dos anos 70, recusam a utilização de metodologias de ensino directo e fazem apelo à participação dos alunos na tomada de decisões, à discussão de dilemas morais, reais e hipotéticos e ao envolvimento dos alunos em comissões de justiça e no governo da escola. A dificuldade em dar continuidade a estes programas e sobretudo a impossibilidade prática da sua generalização e os fraco impacto nos comportamentos e nas acções dos alunos motivaram inúmeras críticas, ao longo da década de 80. Os programas "comunidades justas" foram criticados, sobretudo, pela pouca ou nenhuma atenção concedida à esfera dos comportamentos e das acções. Mais inteligência e mais reflexão nem sempre andam associados a mais benevolência, mais respeito e mais responsabilidade. A primeira reacção de Kohlberg a essas críticas foi reafirmar a crença na posição socrática e platónica, acentuando o cariz formalista da sua filosofia. No final dos anos 70, Kohlberg começa a admitir a necessidade de um certo equilíbrio entre a forma e o conteúdo e os valores e o raciocínio. reconhecendo uma certa desvalorização dos comportamentos e das acções, Kohlberg, nos seus últimos escritos, começou a dar mais importância ao desenvolvimento de comportamentos específicos considerados mais desejáveis em função de uma moralidade orientada para a justiça. Esta mudança foi delineada em duas direcções: primeiro, mais ênfase ao clima moral da escola e, segundo, utilização de acontecimentos reais como pretexto para a reflexão e a discussão de dilemas.
O que é uma pessoa moralmente educada, na perspectiva de Kohlberg? É uma pessoa capaz de fazer uso da reflexão quando perante um problema moral e que consegue chegar a uma solução em termos da consonância com o princípio da justiça, de forma a deliberar em consistência com o princípio do maior bem para o maior número. Exemplos de pessoas moralmente educadas: Jesus Cristo, Sócrates, Janus Korczak e Martin Luther King.
Qual é a posição de Kohlberg face ao doutrinamento moral? A teoria de Kohlberg não reconhece validade a um processo educativo que recorra a técnicas doutrinantes. O doutrinamento é, para Kohlberg, típico de uma educação que fixa os alunos no nível pré-convencional do desenvolvimento moral. As técnicas doutrinantes convidam à heteronomia moral e, portanto, não podem ter lugar nos modelos curriculares cognitivo-desenvolvimentistas. Mas Kohlberg afasta-se, também, das técnicas que acentuam a defesa do relativismo moral. Embora seja de louvar a educação para a defesa do pluralismo cultural, Kohlberg discorda que se conceda igual legitimidade a todas as perspectivas morais ou que se faça depender o processo de deliberação moral de dados contextuais. Uma educação que recuse a existência de hierarquias de valores e de princípios éticos universais coloca o aluno desarmado face à influência das opiniões públicas, dos poderosos e das autoridades. A ausência de referenciais éticos abre caminho a toda a espécie de injustiças e, portanto, é incompatível com uma educação moral orientada para a justiça.
Qual é o papel do professor na teoria de Kohlberg? O papel essencial é servir como facilitador do aluno no processo de desenvolvimento do raciocínio moral. O professor é um recurso do aluno e deve assumir-se como um facilitador no processo de reflexão, de elaboração de juízos e de deliberação. O professor assume uma posição semi-directiva, recusando quer o "laissez faire" quer o directivismo. À semelhança de Sócrates, nos diálogos de Platão, o professor deve ajudar o aluno a colocar questões, a reformular as perguntas, a definir os conceitos e a distinguir as várias posições e pontos de vista. O professor deve ajudar os alunos a identificar um tema, um problema ou um dilema moral. A sua tarefa é manter viva a discussão em torno do problema, permitir que todos os alunos participem na discussão e ajudar a evitar o uso de conceitos errados. De seguida, o professor deve ajudar os alunos a reflectirem sobre formas alternativas de reflexão sobre questões morais. Com esta função, o professor ajuda os alunos a relacionarem o raciocínio com os juízos morais. Por último, o professor deve ajudar os alunos a reflectirem criticamente sobre a adequação dos processos de raciocínio empregues, sobre a sua coerência interna e sobre a sua lógica. É crucial que o professor seja capaz de formular juízos de valor um estádio acima dos juízos emitidos pelos alunos. Desta forma, Kohlberg acredita que os alunos terão a tendência para avançarem do estádio em que se encontram para o estádio imediatamente superior. No contexto dos programas educativos de tipo comunidade justa, o professor desempenha, ainda, a função de dinamizador da participação dos alunos nos processos deliberativos de tomada de decisões sobre assuntos escolares. O professor deve incentivar os alunos a participarem nos órgãos de gestão da escola, em particular, nos conselhos de turma, nos conselhos pedagógicos e nos conselhos directivos. Nos casos em que há comissões de justiça, os alunos são convidados a fazerem-se eleger para esse órgão e, dessa forma, poderem deliberar sobre casos concretos relacionados com a violação das normas escolares e casos de indisciplina. Até meados dos anos 70, Kohlberg privilegiava o papel do professor na promoção da discussão de dilemas morais hipotéticos. Acusado por muitos de propor um modelo curricular pouco eficaz, Kohlberg começou a dar maior importância à dimensão social da moralidade, aproximando-se em muitos aspectos do pensamento educacional de John Dewey e da teoria moral de Durkheim. Essa alteração coincide com a criação dos programas educativos do tipo comunidade justa. A partir daí, Kohlberg começa a valorizar o uso de dilemas morais reais, a partir de situações concretas do dia-a-dia escolar e a acentuar a importância do clima moral da escola na promoção do desenvolvimento moral. Nos seus últimos escritos, Kohlberg acaba por reconhecer a importância da personalidade e do exemplo do professor no processo de desenvolvimento moral dos alunos, aproximando-se, assim, do ponto de vista aristotélico sobre a moralidade, sem nunca abandonar, contudo, o formalismo e o estruturalismo da sua abordagem.
É possível concluir que a teoria de Kohlberg encerra um modelo pedagógico? Embora durante a primeira fase da sua investigação, Kohlberg não estivesse directamente interessado em aplicar a sua teoria em cenários educacionais, a partir de meados dos anos 70 essa começou a ser a sua preocupação central. Podemos, por isso, responder pela afirmativa. Foi a tese de doutoramento de um seu aluno, Moshe Blatt, que levou Kohlberg a interessar-se seriamente pela criação de programas de educação moral inspirados na sua teoria. A investigação de Moshe Blatt tentara avaliar em que medida é que a discussão de dilemas morais, em salas de aula, contribui para o desenvolvimento moral dos alunos. As conclusões a que chegou foram apelidadas de efeito Blatt e podem resumir-se no seguinte: entre um quarto e metade dos alunos que participaram na experiência avançaram pelos menos um estádio. A experiência conduzida por Moshe Blatt incluiu três componentes: apresentação de dilemas morais controversos em áreas que geravam desacordo e conflito cognitivo entre os alunos; turmas moderadamente heterogéneas, com alunos em diferentes estádios de desenvolvimento moral; utilização do interrogatório socrático. Com efeito, estas três componentes estão presentes no modelo pedagógico de inspiração kohlbergiana. Durante os primeiros anos, Kohlberg utilizava um conjunto de dilemas hipotéticos. Nos últimos anos da sua vida, Kohlberg introduz mudanças significativas no modelo pedagógico: ênfase na participação dos alunos na tomada de decisões escolares; uso de dilemas reais originados a partir de situações da sala de aula ou da comunidade local; reconhecimento da influência da personalidade e do exemplo do professor. Esse reconhecimento conduziu Kohlberg a acentuar a necessidade de preparar eficazmente os professores, de forma a torná-los competentes na aplicação da sua teoria.

Crítica
São quatro as principais críticas à teoria de Kohlberg: dúvidas sobre a universalidade dos estádios; acusação de elitismo; ignorância da especificidade do desenvolvimento moral das mulheres; desvalorização do papel da emoção e do hábito no processo de desenvolvimento moral.
De todas as críticas, a terceira é a que parece ter maior consistência, graças aos estudos conduzidos por Carol Gilligan, a qual conheceu grande notoriedade após a publicação do livro In A Different Voice: Psychological Theory and Women`s Development, em 1982. Carol Gilligan critica o facto da teoria de Kohlberg ter sido desenvolvida a partir de um estudo conduzido com uma amostra de rapazes. Com efeito, a Tese de Doutoramento de Kohlberg baseou-se numa amostra de adolescentes do sexo masculino, prestando-se a que o estudo fosse acusado de esquecer a especificidade do desenvolvimento moral das raparigas. Carol Gilligan afirma que o nível pós-convencional de Kohlberg esquece a forma como as mulheres raciocinam sobre questões morais, quando estão em causa conflitos entre as regras sociais e os princípios éticos. Para Carol Gilligan, para além da moralidade preocupada com a justiça, os direitos e os deveres, existe uma moralidade relacionada com o cuidar dos outros, a qual privilegia a manutenção das relações interpessoais, a ligação afectiva entre as pessoas, o afecto e os sentimentos. O nível pós-convencional, capaz de integrar o desenvolvimento das mulheres, inclui a dependência mútua, o dar-se aos outros e o receber dos outros, numa posição de equilíbrio que deixa espaço para a realização pessoal e para a continuidade das relações. Mas Gilligan vai mais longe. Considera que o desenvolvimento moral dos indivíduos deve ir além do reconhecimento das diferenças de género e precisa de incorporar quer o conceito de justiça quer o conceito do cuidar dos outros, tanto nos homens como nas mulheres, de forma que a maturidade moral seja o resultado da evolução conjunta do que é mais típico no desenvolvimento dos homens e no desenvolvimento das mulheres. A importância do trabalho de Carol Gilligan reside no facto de ter chamado a atenção para a existência de duas vozes morais, duas linguagens, duas formas de raciocinar ao nível pós-convencional, as quais devem ser incorporadoas no discurso pedagógico e nos programas educativos de educação moral.
O facto de Kohlberg defender que há juízos morais mais adequados que outros, tem sido alvo de críticas por parte dos apologistas do relativismo moral. Segundo estes, o ponto de vista de Kohlberg padece de elitismo, porque divide os seres humanos em dois grupos: os mais morais e os menos morais. Criticam, sobretudo, o dualismo de Kohlberg, nomeadamente o facto dele fazer depender o desenvolvimento moral da reflexão, da sabedoria e da educação. De uma certa forma, estas críticas foram feitas a Sócrates e a Platão, há quase vinte e cinco séculos.
A tese da universalidade dos estádios tem sofrido inúmeras críticas e refutações sobretudo por parte dos autores de influência comportamentalista e de antropólogos. À semelhança das críticas que têm sido feitas à teoria dos estádios do desenvolvimento intelectual de Jean Piaget, existe uma grande controvérsia em torno da invariância dos estádios e, sobretudo, em torno da universalidade do estádio 6. Alguns autores afirmam que a sequência de estádios apresentada por Kohlberg é típica das sociedades de capitalismo liberal, não tendo aplicabilidade quer nas sociedades agrárias quer nas sociedades onde imperam as oligarquias. Por último, há autores que criticam o facto das emoções e do hábito não jogarem qualquer papel importante na teoria de Kohlberg. Esta crítica remonta ao confronto intelectual entre neoplatónicos e aristotélicos. O que separa, a este nível, Kohlberg dos seus críticos foi o que dividiu Platão e Aristóteles. Estas críticas têm surgido de autores importantes na área da educação moral, nomeadamente Damon (1985), Hoffman (1993), Johnston (1988), Lickona (1991), Noddings (1992) e Perry (1996). Thomas Lickona (1991) tem procurado, através do Center for the 4th and 5 th Rs, ir além da teoria de Kohlberg, no que diz respeito à educação moral das crianças, incorporando o domínio da acção moral e centrando a educação moral no ensino do respeito e da responsabilidade. O modelo curricular criado por Thomas Lickona encara o professor como um modelo, um mentor e um prestador de cuidados às crianças. Na sua perspectiva, o professor não deve limitar-se a suscitar a reflexão dos alunos sobre dilemas morais, embora essa estratégia seja muito importante. Deve tratar os alunos com respeito e carinho, incentivando-os a respeitar os outros e a corrigir os seus comportamentos incorrectos. Thomas Lickona, à semelhança de Kohlberg nos seus últimos escritos, concede um papel central à atmosfera da escola. Uma atmosfera democrática, ordeira e respeitosa constitui uma das principais variáveis na educação moral. O professor pode ajudar a criar essa atmosfera através do cumprimento de rituais escolares, da participação dos alunos na tomada de decisões e do reforço dos comportamentos aceitáveis. Uma outra componente no modelo de Thomas Lickona é a utilização do curriculum para a transmissão de valores. No seu entender, todas as disciplinas são boas para ensinar valores. Cabe ao professor conduzir os alunos a reflectirem sobre os fenómenos, os factos e os conceitos de forma a confrontarem pontos de vista, situações e problemas com implicações morais. A leitura e a discussão de obras filosóficas e literárias com fundo moral constitui outra estratégia importante. Na sala de aula, o uso do ensino cooperativo, colocando os alunos mais adiantados a ajudar os outros em tarefas de aprendizagem, constitui uma estratégia fundamental para o ensino da responsabilidade. Tanto Thomas Lickona como Constance Perry partem da distinção entre reflexão moral, emoção moral e conduta moral para chegarem à conclusão de que qualquer programa de educação moral deve integrar o raciocínio, a empatia, os sentimentos e os hábitos, porque o desenvolvimento moral é o produto de todas aquelas componentes. William Damon (1993), um autor cognitivista bastante influenciado pela teoria de Kohlberg, considera que a cabeça, o coração e o hábito, isto é, a reflexão, os sentimentos e a conduta, devem ser examinados em conjunto, porque eles surgem associados no processo de realização de escolhas morais. Uma criança moralmente educada é aquela que é capaz de reflectir perante problemas morais, mostrar preocupação pelos outros e agir de forma apropriada e consistente. Hoffman (1993) chamou a atenção para a necessidade de incorporar a motivação e a empatia no processo de deliberação moral. No seu entender, um acto moral depende do desejo de fazer alguma coisa em benefício de uma pessoa ou de um grupo e de agir de acordo com uma norma ou um princípio. Embora a reflexão possa estar presente, e geralmente está, acontece muitas vezes ser a motivação, a empatia e o hábito os factores determinantes no processo de deliberação moral, quando estão em questão situações dilemáticas reais. Para além disso, Hoffman (1993) acredita ter demonstrado que as crianças são capazes de compreender a perspectiva dos outros bem antes da idade em que Piaget e Kohlberg pensavam ser possível. A explicação para isso reside no facto dos sentimentos altruístas serem naturais em muitas crianças. Por outro lado, um ambiente familiar marcado pela empatia, carinho e amor pode preparar mais cedo a estrutura motivacional da criança para a compreensão dos pontos de vista e interesses dos outros. Um ambiente familiar que exponha a criança a modelos altruístas e que lhe proporcione experiências sobre os sentimentos e necessidades dos outros ajuda a aumentar a consciência da criança e a sua compreensão pelos outros. Algumas destas críticas, em particular as de Carol Gilligan, William Damon e Constance Perry podem ser consideradas mais como desenvolvimentos da teoria de Kohlberg do que como oposição a ela. Nestes casos, estamos perante autores que seguem o mesmo paradigma cognitivo-desenvolvimentista, mas que quiseram ir além dos limites traçados pela investigação de Lawrence Kohlberg. Sem negarmos alguma pertinência a estas críticas e desenvolvimentos, parece-nos que o lugar de Kohlberg no campo do desenvolvimento moral continuará a ser cimeiro por muitos anos, já que o carácter inovador do seu trabalho o consagrou como um clássico de referência obrigatória em todos os manuais de psicologia do desenvolvimento. Mesmo as críticas e refutações que têm sido feitas à universalidade e à sequência invariante dos estádios do desenvolvimento moral carecem de prova e pecam, em muitos casos, por falta de consistência.

sábado, 17 de abril de 2010

Em breve terão mais conteúdos sobre o desenvolvimento da aprendizagem

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Epistemologia Genética

Esta teoria do desenvolvimento da inteligência foi desenvolvida pelo biólogo, psicólogo e filósofo suiço Jean Piaget (1896-1980), consistindo em parte numa combinação das teorias filosóficas então existentes, o apriorismo e o empirismo. Baseado em experiências com crianças a partir do nascimento até a adolescência, Piaget postula que o conhecimento nao é totalmente inerente ao próprio sujeito, como postula o apriorismo, nem que o conhecimento provenha totalmente das observações do meio que o cerca, como postula o empirismo.
Para Piaget, o conhecimento é construído através da interação do sujeito com seu meio, a partir de estruturas existentes. Assim sendo, a aquisição de conhecimentos depende tanto das estruturas cognitivas do sujeito como de sua relação com o objeto.
Estágios de desenvolvimento
Para Piaget, o desenvolvimento humano obedece certos estágios hierárquicos, que decorrem do nascimento até se consolidarem por volta dos 16 anos. A ordem destes estágios seria invariável e inevitável a todos os indivíduos. Os intervalos de tempo citados nos trës estágios abaixo não são fixos, podendo variar para mais ou para menos em função do indivíduo, do ambiente, da cultura.

Estágio sensório-motor ( do nascimento aos dois anos) - a criança desenvolve um conjunto de "esquemas de ação" sobre o objeto, que lhe permitem construir um conhecimento físico da realidade. Nesta etapa desenvolve o conceito de permanência do objeto, constrói esquemas sensório-motores e é capaz de fazer imitações, construindo representações mentais cada vez mais complexas
Estágio pré-operatório (dos dois aos seis anos) - a criança inicia a construção da relação causa e efeito, bem como das simbolizações. É a chamada idade dos porquês e do faz-de-conta.
Estágio operatório-concreto (dos sete aos onze anos) - a criança começa a construir conceitos, através de estruturas lógicas, consolida a conservação de quantidade e constrói o conceito de número. Seu pensamento apesar de lógico, ainda está centrado nos conceitos do mundo físico, onde abstrações lógico-matemáticas são incipientes.
Estágio operatório-formal (dos onze aos dezesseis anos) - fase em que o adolescente constrói o pensamento abstracto, conceitual, conseguindo ter em conta as hipóteses possíveis, os diferentes pontos de vista e sendo capaz de pensar cientificamente.
Estrutura e aprendizagem
Na concepção piagetiana, a aprendizagem só ocorre mediante a consolidação das estruturas de pensamento, portanto a aprendizagem sempre se dá após a consolidação do esquema que a suporta, da mesma forma a passagem de um estágio a outro estaria dependente da consolidação e superação do anterior. Na perspectiva de Piaget, para que ocorra a construção de um novo conhecimento, é preciso que se estabeleça um desequilibrio nas estruturas mentais, isto é, os conceitos já assimilados necessitam passar por um processo de desorganização para que possam novamente, a partir do contato com novos conceitos se reorganizarem estabelecendo um novo conhecimento. Este mecanismo pode ser denominado de equilibração das estruturas mentais, ou seja, a transformação de um conhecimento prévio em um novo.

terça-feira, 6 de abril de 2010

A pessoa como sujeito moral

Pode-se assumir que, segundo Kant, o sujeito moral é o ser racional. Para seres humanos, o sujeito moral pode ser qualificado como um ser racional sensível. O conceito de personalidade adquire aqui importância crucial. Na Religião dentro dos limites da simples razão, podemos ler que “a disposição para a personalidade é a suscetibilidade ao respeito para com a lei moral, como um motivo para si suficiente do arbítrio” (Religião B 18/ Ak VI: 27). Essa disposição diz respeito ao homem “como ente racional e ao mesmo tempo responsável” (Religião B 15/ Ak VI: 26). Tal compreensão nos leva a pensar nos conceitos de responsabilidade moral e liberdade. A fim de discutir tais conceitos, precisarei discorrer sobre a compreensão kantiana de filosofia moral, os conceitos de boa vontade, dever, imperativo categórico, vontade e arbítrio.

Para todas as mulheres

Parabens a todas as mulheres mocanbicanas pelo dia 7 de Abril.