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domingo, 30 de maio de 2010

"Geração" de viragem: utopia ou realidade!

SR. DIRECTOR!Antecipo, agradecimentos pela publicação deste artigo no jornal que V.Excia dirige com prudência, graças a mestria DA vossa equipa técnica. A humanidade sempre foi caracterizada por uma sucessão de gerações, com ideologias que definem uma determinada visão do mundo. A juventude moçambicana não é excepção destas leis sócio-culturais e ideológicas, que sempre procuram, deste a pré-história, construir um projecto futuro da humanidade. 
Maputo, Segunda-Feira, 24 de Maio de 2010:: Notícias

Em Moçambique passaram várias gerações, que importa apenas salientar, a “Geração 25 de Setembro”, a “Geração 8 de Março”, cujos objectos comuns se enquadram Numa única perspectiva ideológica, virar Moçambique para bem-estar do seu povo. A terminologia geração de viragem não é uma excepção dos conceito antecedentes, onde o termo “geração” ritma em todas as expressões ideológicas, “geração 25 de Setembro, geração 8 de Março”, embora está última não se trate de um movimento juvenil político, mas sim uma necessidade imperiosa para o país fazer face à fuga massiva dos quadros do Governo colonial.

Foram recrutados jovens de todas as faixas etárias para ocupar cargas e postos de confiança no Governo para virar o cenário que se assistia pós independência. Jovens de faixas etárias dos 20-25, 25-30, entre outras, foram chamados, queira sim ou queira não, a abandonar os estudos para se filiar nas forças da luta contra a pobreza. É a mesma geração que está em certos cargos de soberania e que ainda está a dirigir os destinos dos moçambicanos na luta contra pobreza.

A expressão “geração de viragem” além de carregar consigo um sentido político, trata-se de uma extrapolação das gerações antecedentes, que visa segundo a explicação do Presidente da República, Armando Guebuza, chamar a juventude a engajar-se na luta contra a pobreza. Gostaria de esclarecer que, a pobreza não é um fenómeno acidental. Porém, a definição de pobreza do PARPA II é, “Impossibilidade por incapacidade de/ou falta de oportunidade dos indivíduos, famílias e comunidades de terem acesso às condições básicas mínimas, segundo as normas básicas da sociedade”. Em contrapartida, pobreza humana é a falta da capacidade humana básica, como analfabetismo, mal nutrição, esperança de vida reduzida, saúde materna fraca, incidência de doenças preveníveis, bens, serviços e infra-estruturas básicas – saneamento, água potável, educação, comunicações, energia, etc.

Aglutinando ambas as abordagens conceituais pode-se perceber que, a pobreza não é apenas a falta de recursos de subsistência, mas também a falta de oportunidades onde, tanto o cidadão comum, assim como os gestores dos bens públicos têm uma responsabilidade perante esta situação em que o povo moçambicano se encontra.

Se é verdade que a “geração de viragem” é chamada a inspirar-se no combate à pobreza então, é verdade também afirmar que a mesma é chamada a engajar-se, directa ou indirectamente, na luta pele mesma. Para o efeito, o termo “pobreza” não deve ser um expressão politizada, mas sim, algo que deve tocar com a sensibilidade de todos os moçambicanos.

O ser humano nasce com uma cultura de trabalho embora as culturas diversifiquem as formas de trabalho, seja um trabalho sustentável ou não. A sobrevivência do ser humano na terra impõem a cultura de trabalho para se alimentar e cuidar da sua família. É responsabilidade do chefe de família conduzir sua família a bom porto, rumo ao bem-estar. Da mesma forma, é responsabilidade de quem dirige os destinos do povo moçambicano, conduzir o seu povo com mestria rumo ao desenvolvimento, criando oportunidades para todos de emprego, de financiamento, de investimento, de formação, etc.

Todavia, o slogan “geração de viragem” não rima em consonância com a definição da pobreza usado no PARPA II, assim como com o actual modelo de governação.

Primeiro, os jovens apenas ganham expressão política pelo voto popular que não influencia directamente no processo de tomada de decisão quanto à governação. Segundo, suas acções interventivas no combate à pobreza absoluta são marginais, pois não têm nenhum poder decisivo no processo de governação, como seria de esperar, o contrário da geração 25 de Setembro e 8 de Março, em que alguns jovens foram chamados assumir cargos de soberania no Governo (ministros, governadores, directores, etc.), o contrário da geração de viragem.

A verdade manda questionar: quantos jovens estão nas posições de tomada de decisão no processo de governação? Quantos deputados jovens no Parlamento, quantos jovens governadores, ministros ou vice-ministros, directores ou jovens que estão, directa ou indirectamente nas áreas de soberania ou afins, com poder de influenciar a tomada de decisão quanto à boa governação? Então que poder “ de viragem” que estes jovens têm, enquanto ocupando cargos marginais no processo de governação?

Convidar a juventude a embarcar na geração de viragem rumo ao combate à pobreza, impõem a necessidade da inclusão de uma massa juvenil significativa no processo de tomada de decisão quanto à governação.

A “geração 8 de Março” surgiu para contrariar um fenómeno, o contrário da “geração de viragem”, porque a pobreza não é um fenómeno, mas sim uma fase que o povo moçambicano está a passar, e quer passar o mais rápido possível. Se a militância da geração de viragem é contra a pobreza, então será necessário criar uma geração que vai lutar contra a corrupção e outra contra o espírito de deixa andar, um dos grandes constrangimentos do desenvolvimento.

Senhor Presidente da República, em nome de todos os jovens moçambicanos, solicito a V.Excia uma revisão do actual modelo da governação para ajustar-se ao slogan “geração de viragem”, no sentido de incluir a juventude no processo de tomada da decisão quanto à governação, de modo a que os jovens se sintam directamente engajados na missão que lhes é incumbida com responsabilidade ética e profissional.

A ideia não é demitir todas entidades que estão nos cargos de soberania (ministros e vice-ministros, governadores, directores, etc.), mas sim incluir uma quota significativa da massa juvenil, não necessariamente nos cargos de liderança, mas sim nos cargos decisórios de governação.

É preciso criar uma representatividade juvenil em todos processos de governação para que a “geração de viragem” possa engajar-se directamente no combate à pobreza.

SOBRE A GERAÇÃO DA VIRAGEM

(Texto do Analista político Egidio Vaz, publicado a propósito do debate em torno da Geração da Viragem, termo adoptado pelo Presidente de Moçambique Armando Guebuza para apelidar a juventude Moçambicana na actualidade )

colegas,

Era minha intenção não intervir neste debate (sobre a Geração da Viragem) porque o acho bastante complexo. Pessoalmente e do ponto de vista metodológico e historiografico, sinto que alguém está sim a colocar a carroça à frente dos bois. A nomenclatura de gerações é normalmente feita a posteriori e não a priori,da mesma forma como se procede em relação à heroificação de um indivíduo . E para tal, procede-se à um conjunto de metodologias, revisita-se a história, verificam-se vários factos históricos; vários acontecimentos e por último, agarra-se num facto para metonímicamente caracterizar a toda uma geração. E por falar específicamente em gerações, importa referir que se está a fazer vista grossa à um pormenor bastante importante para a História deste país. Se quisermos historiar o processo político, social e económico deste país através de gerações, veremos que da dita geração 25 de Setembro á Geração 8 de Março vão aproximadamente menos de 25 anos, que é normalmente o comprimento que separa as gerações. Pior, se por geração se quer caracterizar a todo um período histórico do país, com suas especificidades, então teremos um grande problema em relação ao mérito da geração 8 de Março, devido a problemas que ela arranjou e não resolveu: a morte de Samora Machel, a Guerra dos 16 anos, etc. Assim, Afonso Dhlakama, André Matsangaísse, o General Bobo aka Hermínio Morais (que derrubou a ponte sobre Dona-Ana) seriam também parte indiscutível da geração 8 de Março de que hoje nos orgulhamos! Sobre este potno, falarei numa outra ocasião.
Para o que nos interessa, acho que o Presidente da República decidiu apelidar-nos por geração de viragem para "saciar a fome de uma clique de jovens" da Frelimo que procura uma identidade própria e, por essa via, um lugar ao sol no seio de várias correntes e grupos de interesse do partido Frelimo e assim reclamar um quinhão.
Na verdade todas gerações são/foram de viragem. Viragem contra o estado colonial, buscando a independência; viragem da Província Ultramarina de Moçambique para a República Popular de Moçambique; viragem do sistema socialista/monopartidário para multipartidário e de economia orientada para o mercado, etc.
É essencialmente de actos heróicos indeléveis que distingue uma geração da outra. Ora, chamar-nos de uma geração de viragem não passa de facto de uma piada!
Primeiro porque ela no fundo não existe. Não faz sentido aceitarmos um título porque o trabalho mal começou.
Segundo, porque do ponto de vista metodológico, esse acto equipara-se sim ao acto de colocar a carroça a frente dos bois. Estamos ainda no começo de uma geração; mal se consegue vislumbrar o futuro do país; o país vive à sombra dos feitos da geração 25 de Setembro; os jovens enfrentam problemas básicos, que de forma sistemática torpedeam a sua emancipação; difícil é imaginar sairmos do fundo deste poço como fez oBarão de Münchhausen.
Terceiro, porque na verdade, não seremos nós, a avaliar o nosso trabalho; não estamos em melhores condições para aferir a diferença que fazemos no presente ou faremos no futuro, quando as outras gerações nos suceder. Serão outros a fazê-lo mas nunca a geração 25 de Setembro. E a modéstia obriga-me a agradecer pela gentileza e declinar o título. Pelo menos eu não faço parte da geração de viragem.
Mas voltemos ao princípio para compreendermos porque então o PR decidiu apelidarmos de geração de viragem.
Em primeiro lugar digo que foi sim um acto jocoso. Está a gozar connosco. No fundo, ele até nem assim nos considera. Para quem está atento, e relendo as passagens de colegas, tiradas dos vários discursos do PR, ele impõe condições para que assim sejamos considerados. Por outras palavras, o PR está a dizer aos "seus jovens" que ainda não fizeram nada. E se quisermos merecer alguma distinção, devemos fazer qualquer coisa útil e heróica para este povo. Como se não bastasse, ele aponta algumas dessas coisas. A subtileza da sua linguagem e a ironia patente nos seus discursos e mensagens, fazem com que a maioria de jovens distraídos não seja capaz de ver, pensar e agir. Logo correram em assumir que o PR disse que nós eramos a geração de viragem, qual rolas em fuga debandada!
Segundo, o PR só assim procede porque a Frelimo vive um dilema interessante: o conflito geracional por um lado e a necessidade de garantir a passagem tranquila do testemunho sem contudo descaracterizar a essência do que a Frelimo é, por outro. Não é por acaso que os conceitos deJovem e sangue novo são na Frelimo, polissêmicas. Meses antes de Armando Guebuza assumir a secretaria-geral da Frelimo, falava-se aos quatro ventos da necessidade de se injectar na Frelimo sangue novo. A ideia que a maioria tinha era de que Eduardo Mulémbue ou Hélder Muteia seriam finalmente o sucessor de Joaquim Chissano. Mas, a medida que nos iamos aproximando do momento exacto, apareceu o histórico Nihia numa longa entrevista do Noticias a explicar o verdadeiro sentido de sangue novo e da juventude. Foi nessa altura que ficamos claros. Armando Gubuza foi assim o sangue novo e o jovem que a Frelimo elegeu para assumir a liderança da Frelimo e por essa via chegou a liderança do país.
Há bem pouco tempo, o General Hama Thai veio pôr as coisas muito bem claras, quando em entrevista ao Magazine Independente disse que os Jovens eram capazes de vender o país. O debate levou muitos dias, até que ele voltou a explicar o sentido dessa "venda". Em todo esse processo, fica patente o receio que a Frelimo nutre pela sua juventude, com óbvias consequências para o país inteiro!
E porque a Juventude da Frelimo quer que lhe seja reconhecida algum mérito pelas vitórias que o partido e o governo vêm somando; pelo sucesso dalguns dos seus programas e, acima de tudo, porque estatísticamente o país é essencialmente jovem e daí inferir-se a ideia de que são jovens que dão vitória a Frelimo e seus candidatos, vai assim a Frelimo apelidar à sua juventude de geração de viragem, por outras palavras, geração de nada.

Em vez de discutirmos o trocadilho de palavras, seria útil se os jovens da Frelimo preocupassem-se em aumentar o seu capital político e influência dentro da Frelimo, no Governo e na agenda do próprio PR para assim lograrmos ter um programa de governo que tenha na Juventude, o seu centro de acção. Se calhar, esse seria o primeiro passo para uma verdadeira VIRAGEM em todas suas facetas! E depois, os outros procuriam um nome para designar a nossa geração.

Egidio Vaz

sábado, 29 de maio de 2010

Karl Otto Apel

Introdução

A era moderna tinha como projecto a emancipação do homem da natureza através da técnica, a emancipação do homem das ditaduras através da democracia, a emancipação do homem de Deus através da razão.

Mas o projecto da modernidade falhou, isto é, a modernidade não conseguiu superar todos os males; o que se viu surgir uma nova era- a chamada era pós-moderna ou a era das telecomunições.

Nesta perspectiva, o trabalho ora presente diz respeito a cadeira de Filosofia da Pós-modernidade e visa falar de Karl Otto Apel, principais pensamentos deste, sua doutrina e tese.

De referenciar que o trabalho não tem por intenção esgotar o tema, mas falar em linhas gerais do pensamento de Apel, tudo porque o rigor científico não permite esgotar um determinado tema. Esperamos que o mesmo sirva de material de consulta aos estudantes bem como ao público em geral que se interessem pelo tema.

1.Vida e obra de Karl Otto Apel
Karl Otto Apel nasceu em Düsseldorf na Alemanha aos 15 de março de 1922) é Professor Emérito da Johann Wolfgang Goethe-Universität de Frankfurt am Main .
Licenciado em Bonn e doutor em filosofia em Mainz, em 1960. Foi professor em Kiel (1962-1969), Saarbrücken (1969-1972) e na Johann Wolfgang Goethe-Universität, (1972-1990).
Apel Tornou-se um dos teóricos mais influentes da Escola de Frankfurt, após a morte de Adorno, no final da década de 1960. Crítico do cientificismo positivista por considerá-lo redutor da razão, na linha defendida pelos frankfurtianos, Apel elaborou trabalhos sobre a ética comunicativa e se assume como um dos restauradores da filosofia prática.
O trabalho de Apel incorpora elementos tanto da Filosofia analítica como do pragmatismo e da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt.
No plano da crítica ao racionalismo positivista, faz uma clara distinção entre a compreensão e a explicação. Em seu livro Understanding and Explanation: A Transcendental-Pragmatic Perspective, Apel reformula a diferença entre entendimento (Verstehen) e explicação (Erklärung), contidos na hermenêutica de Wilhelm Dilthey e na sociologia interpretativa de Max Weber, com base em uma concepção transcendental- pragmática de linguagem, inspirada em Charles Peirce. Essa concepção do "mundo da vida" tornar-se-ia um elemento da teoria da ação comunicativa e do discurso ético, que Apel a princípio desenvolveu com seu amigo e colaborador Jürgen Habermas.
Embora basicamente concorde com a teoria da ação comunicativa de Habermas, Apel é crítico com respeito a alguns aspectos da abordagem do colega. Apel defende que a teoria da communicação deva basear-se nas condições pragmático-transcendentais da comunicação e assim, depois de um ponto de partida comum, Habermas e Apel seguiram caminhos diferentes. Habermas encaminhou-se para um "transcendentalismo fraco", mais próximo da pesquisa social empírica.
Apel também escreveu diversos trabalhos sobre Peirce e foi presidente da 'Charles Sanders Peirce Society.
2.A base do pensamento Linguístico da Filosofia de Karl Otto Apel

Apel mostra que a transformação linguística da filosofia mediante uma transformação filosófica da linguagem, não pode consistir em instalar a linguagem, entendida como instância mediadora da racionalidade, no paradigma sujeito-objecto ratificado pela clássica teoria transcendental do conhecimento, como se o modelo kanteano de "consciência em geral" funcionasse in extremis como "sujeito transcendental da linguagem". Por outro lado, a transformação da filosofia, postulada por Apel, também não pode consistir numa mera identificação do sujeito transcendental do conhecimento com o limite linguístico do mundo (tal como parece ser exigido por uma "lógica transcendental" da forma linguística pura).
“Todos os intentos para transformar a prima philosophia a partir do ponto de vista estrito de uma filosofia da linguagem, quer analítica (seja ela sintática, semântica ou pragmática), quer hermenêutica, quer mesmo semiótica, tendem estruturalmente ao fracasso”( APEL, 1985:123). Sempre que não se extraiam com as consequências radicais do facto de não se poder entender o pensamento inscrito numa linguisticidade (e por via disso, a própria validação justificacional do conhecimento) como função de uma consciência “solipsisticamente” concebida, mas sim como função que resulta de uma reflexão filosófica sobre e mediante a linguagem, reflexão essa, para Apel, transcendentalmente dependente de um a priori comunicacional.
É precisamente na esteira desse sentido crítico, que a tarefa apeleana de fundamentar a filosofia em plena era da linguagem, sem cair fatalmente nas armadilhas conceptuais não só da suspeita analítica contra a “metafísica” , como também da conjutura “pós-moderna” contra a razão, pressupõe um “regresso” -não uma regressão!- à doutrina transcendental.
A filosofia de Apel não pretende pois repensar sequer o enxerto da teoria tradicional do conhecimento no binómio clássico sujeito-objecto. Pretendê-lo seria, não só carregar ainda de forma implícita com o pesado fardo da herança “solipsística” da filosofia cartesiano-kanteano-husserliana da consciência, como admitir também a imunidade canónico-transcendental do subjectivismo que a epistemologia contemporânea contempla, ao reduzir fáctico-naturalístico-instrumentalmente o sujeito da teoria e da praxis a um objecto de saber manipulável.
Se não quiser chegar irremediavelmente atrasada, quer em relação à flecha evolutiva dos acontecimentos, quer ao estado actual das discussões teórico-éticas, a filosofia de que Apel pretende ser porta-voz terá, nesta viragem de milénio, de assumir radicalmente a tarefa de empreender uma desconstrução consequente da filosofia do sujeito, à luz de uma re-transcendentalização da linguagem e, “inter-remissivamente”, de proceder a uma fundamentação crítica da linguagem re-transcendentalizada à luz de uma justificação a priorística da comunicacionalidade.
“Substituir uma metafísica do "eu penso" pela metafísica crítica da formação do consenso numa comunidade real de comunicação, nisto deve consistir, portanto, a "transformação da filosofia".( Idem:127).
A base de uma concepção transformacional de filosofia, é que poderemos erigir o pensamento de Apel como "crítica da comunicacionalidade pura", numa cultura epistemologicamente formatada por três paralogismos "quase-comunicacionais":
- O paralogismo social da interferência mediática (falácia da comunicação de massa), incapaz de resolver o "aparente" dilema entre a opção maximalista pelos factos de relevância pública e a obsessão minimalista pelos detalhes da vida privada;
- O paralogismo político da participação cívica (falácia do pluralismo democrático), incapaz de contornar a "aparente" dicotomia entre a uniformidade das decisões maioritárias e a ideossincrasia das opções individuais; e finalmente
- O paralogismo ético da intervenção ecológica (falácia da aldeia global) incapaz de superar o "aparente" contraste entre o teor individualista de uma moral submetida aos ditames de uma consciência pessoal e o cunho pluralista de uma moral sujeita ao imperativos de uma responsabilidade colectiva.

Da dissolução teórica destes três paralogismos depende tão só o facto de concebermos a filosofia de Apel como proposta renovada e fecunda de um novo modelo de racionalidade. Modelo esse que teremos de situar inter-remissivamente:

a). Por um lado, numa discursividade que responde eticamente perante o(s) outro(s) no estofo transcendental de uma comunicação actuante, constituidora em última instância da própria condição de possibilidade do discurso;
b). Por outro lado, numa eticidade exercida discursivamente com o(s) outro(s) no estofo transcendental de uma acção comunicativa, constituidora em última instância da própria condição de possibilidade da ética.

3. O que é a linguagem?

Nunca como na actualidade houve uma consciência tão clara de que a palavra linguagem, mais do que um objecto sobre o qual as ciências se debruçam empiricamente (a par de outros objectos "intra-mundanos"), evoca um problema fundamental, não só para as ciências linguísticas, mas também para a ciência, e mesmo para a filosofia.

Paralelamente à emergência dessas novas questões assistiu-se a uma "reorientação" do escopo teórico das ciências humanas: averiguar a a virtualidade linguística dos seus objectos e dos seus procedimentos metodológicos.

A essa averiguação linguística não é de todo estranho o surto disciplinar de áreas de reflexão, tais como a “psicolinguística” , a “sociolinguística” , a “metalinguística” , a “semântica do texto” , etc. A teia formada por essas áreas resultou na constituição de um nicho interdisciplinar que possibilitou o "contacto" das ciências humanas com as questões da linguagem, e criou as condições propícias para a sua consequente "autonomização" epistemológica.

A teoria da linguagem deixa pois de ser conotada como ancilla scientiae, para se assumir como ciência do real.

“Todavia, a teorização do acontecimento linguístico numa óptica exclusivamente científica não preenche de todo os requisitos formais de uma adequada determinação do conceito de linguagem. Essa determinação não compete às "ciências da linguagem", mas à filosofia.”( idem: 129).

Mais ainda: no entender de Apel, compete a "uma" filosofia capaz de compreender que a formação filosófica de conceitos, na era das ciências particulares, não só deverá basear-se na abstracção metódica realizada pelo "entendimento", mas também na superação das abstracções do entendimento, constitutivas do objecto, levada a cabo pela razão.

3.1.A filosofia face a linguagem
Mesmo admitindo que a filosofia não possa ser senão teoria da ciência, ainda assim a filosofia só sairá desse impasse na medida em que facultar à construção teórica das ciências particulares uma determinação fecunda do conceito de linguagem, mediante o concurso de uma reflexividade crítica.( APEL,1988: 19).

São três os requisitos transcendentais que, no entender de Apel, se colocam à filosofia, a partir do momento em que pretende construir um conceito de linguagem, independentemente das tematizações abstractivas das ciências particulares:

a) A filosofia deve empreender a construção de um conceito de linguagem que torne esclarecíveis as abstracções metódico-operativas aplicadas pelas ciências da linguagem ao travejamento discursivo das ciências particulares;

b) Permita valorizar o alcance crítico dos resultados conceptuais alcançados pelas tematizações das ciências da linguagem,

c) Assuma a reflexão sobre os próprios pressupostos linguísticos da filosofia.

3.2. Os caminhos da tríplice exigência filosófica na determinação do conceito de linguagem na mediação linguística
Exige-se que que se tome em conta a tríplice exigência filosófica (esclarecedora, crítica e reflexiva) na determinação do conceito de linguagem na mediação linguística.

Para Apel o caminho que torna possível a pretendida determinação filosófica do conceito de linguagem consiste em mostrar que a linguagem possui uma magnitude transcendental no sentido kanteano; mais precisamente ainda: está em posse das condições que possibilitam e validam o acordo e auto-acordo, e, nesse sentido, o pensamento conceptual, o conhecimento objectivo e o agir com sentido.

“Tal tarefa não se egota porém nos limites do exercício da razão científica, quer dizer, não visa apenas a textura da construção dos enunciados conceptuais e teóricos da ciência, mas estende-se ao próprio âmbito gnoseológico da constituição intersubjectiva do conhecimento enquanto tal”.( Idem:29).

De forma mais explícita, poderíamos afirmar com Apel que a reflexão sobre a linguagem tem de estar dependente de uma filosofia transcendental que responda à pergunta pelas condições de possibilidade e validade das convenções.

É precisamente nesta acepção transcendental que temos de situar em Apel o sentido de uma transformação da filosofia.

Tal transformação deve ser realizada não só ao nível da sua vertente teórica, como também no plano da sua dimensão prática. Com efeito, a possibilidade de uma fundamentação ética depende também da possibilidade de a "filosofia prática" estar meta-eticamente mediada por um uso da linguagem e, nessa medida, por uma filosofia da linguagem.

Para que a filosofia cumpra a tarefa de fundamentar uma teoria da ciência e uma filosofia prática, a explicitação do conceito transcendental da linguagem tem de satisfazer por seu turno duas exigências: uma desconstrutiva e outra reconstrutiva.

Quer dizer: em primeiro lugar, importa desconstruir criticamente a ideia de linguagem, esclarecendo a génese e as sedimentações históricas do conceito, desde a filosofia clássica grega até hoje; em segundo lugar, é necessário reconstruir criticamente a noção de transcendentalidade, mostrando que a filosofia crítica pode "corrigir" a sua trajectória, no domínio de uma racionalidade configurada pela linguagem.

É mediante esta "desconstrução" e "reconstrução" críticas da linguagem que Apel intenta esclarecer dois aspectos: por um lado, que as determinações científicas da linguagem não são "falsas" mas insuficientes; por outro, que o único critério capaz de reconstruir o sentido da transcendentalidade depende da possibilidade ou não de se superarem duas das grandes dicotomias da filosofia moderna e contemporânea, a saber, a consciência face à linguagem, a teoria face à prática.

3.3. A teoria do conhecimento no trânsito da consciência para a linguagem.
São três as formas pelas quais se podem unir, segundo Apel, os conceitos de linguagem e verdade :
a) Ou pensar imediatamente numa investigação etimológica que vise o que classicamente ficou designado por "rectitude onomástica" no seguimento da querela em torno da origem natural ou convencional da linguagem;
b) Ou "dilatar" o âmbito clássico do objecto da linguagem, fazendo-o incidir já não na questão da "adequação" e "origem", mas na questão do seu "teor", tal como se encontra referido no conhecido axioma de W. von Humboldt, "as línguas não são propriamente meios para representar a verdade já conhecida, mas sobretudo para descobrir a que antes era desconhecida (...); que a sua diversidade não é a dos sons e signos, mas uma diversidade de visões do mundo;
c) ou, ainda, conduzir as duas alternativas anteriores até às ultimas consequências, extraindo daí as condições "operativas" que mais tarde permitirão a Boole, Peano e Frega dar corpo à aspiração leibnitzeana de uma "linguagem universal.

Apel mostra, porém, que este tipo de acercamento lógico-sintático da linguagem remonta já aos pressupostos históricos da lógica simbólica, de que Leibniz, e posteriormente Boole, tinham feito: o formalismo, a abstracção por parte do intelecto calculador de todo o conteúdo com sentido na linguagem, esgota-se numa combinatória de signos; no formalismo operativo da sintaxe dos signos linguísticos o que permanecerá pela primeira vez esclarecida é a essência do "significado" em sentido filosófico e, a partir dela, da "verdade" filosófica.
No entender de Apel a linguagem só pode ser pragmática, na medida em que só ela configura o acordo acerca das condições de verificabilidade e ocorrência linguísticas.

Para o autor, o paradigma que melhor parece responder a esse inciso pragmático da linguagem encontra-se bem patente na semiótica tridimensional de Charles Morris.

4. Karl Otto Apel e a interpretação do pensamento de Peirce e Kant
A proposta lançada por Peirce de, com a Semiótica , determinar como devem ser todos os signos para uma inteligência capaz de aprender com base na experiência e de, com a doutrina do Pragmaticismo, determinar para qualquer conceito todos os efeitos práticos concebíveis que dele venham a decorrer, exige que se investigue qual o fundamento que a sustenta.
A hipótese que tal fundamento se encontra em alguma instância transcendental tem se mostrado bastante atraente, pois faria avançar a proposição kantiana, fazendo com que esta viesse a adentrar no domínio semiótico. Ser semiótico, contudo, insere inexoravelmente o pensamento no domínio fenomênico e, ipso facto, exclui a possibilidade de se postular qualquer instância transcendental alcançável pela Razão e que viesse predicar seus atos com a objetividade dele decorrente. O caráter originariamente abdutivo de toda representação e sua constante submissão à verificação experimental conferem à necessidade das proposições um caráter de prognóstico e não de um determinismo imposto às aparências. A determinação da conduta futura na busca eminentemente ética de seu objeto,
Não menos surpreendente, se pensarmos bem, é a proposta central do Pragmatismo - ou como a partir daquele momento Peirce passaria a denominar, Pragmaticismo - de desenvolver-se como um método de investigação a partir da afirmação que " uma concepção, isto é, o teor racional de uma palavra ou outra expressão reside, exclusivamente, em sua concebível influência sobre a conduta da vida; de modo que, como obviamente nada que não pudesse resultar de um experimento pode exercer influência direta sobre a conduta, se se puder definir acuradamente todos os fenômenos experimentais concebíveis que a afirmação ou a negação de um conceito poderia implicar, ter-se-á uma definição completa de um conceito, e nele não há absolutamente nada mais.
Não é certamente por um puro acaso que estudiosos do pensamento de Peirce e sinceros simpatizantes de sua filosofia, como é o caso sobretudo de Karl-Otto Apel, procuram inserir a este pensamento e a esta filosofia no caudal do idealismo transcendental e vê-los, mesmo, aprimorar o posicionamento kantiano, sem ter que recorrer à dialética totalizante de Hegel ou de Marx.
O Eu penso, como unidade originária da apercepção, garantia à Crítica kantiana representar a priori o domínio completo da Razão tanto em sua função teórica quanto em sua função prática, permitindo que daí se deduzisse todas as formas possíveis de representação da Realidade, aplicassem elas ao conhecimento possível ou exclusivamente ao puro pensamento.
A espessura da trama da linguagem, ou mais precisamente, a espessura de toda e qualquer semiose não era, contudo, levada em conta pelo pensamento clássico, inclusive pelo pensamento kantiano.

Conclusão
Apel preocupa-se mais na sua Filosofia com as questões de semiótica e ética. Ele focaliza com muita incidência a linguagem.

Para Apel a filosofia deve empreender a construção de um conceito de linguagem que torne esclarecíveis as abstracções metódico-operativas aplicadas pelas ciências da linguagem ao travejamento discursivo das ciências particulares; a filosofia deve Permitir a valorização do alcance crítico dos resultados conceptuais alcançados pelas tematizações das ciências da linguagem, e a filosofia deve assumir a reflexão sobre os próprios pressupostos linguísticos da filosofia.

Apel preocupa-se em explicar a respeito da tríplice exigência filosófica que é dela ser esclarecedora, ser crítica e de ser reflexiva.

Na concepção de Apel a linguagem só pode ser pragmática, na medida em que só ela configura o acordo acerca das condições de verificabilidade e ocorrência linguísticas. Para o autor, o paradigma que melhor parece responder a esse inciso pragmático da linguagem encontra-se bem patente na semiótica tridimensional de Charles Morris.
Apel fez o estudo de Pierce, de Kant.

Bibliografia
APEL, Karl-Otto. La Transformación de la Filosofía. vol. 2, Madrid, Taurus, 1985.
__________ Fondement de la Philosophie Pragmatique du Language dans la Sémiotique
Transcendentale" Janeiro de 1988". Cruzeiro Semiótico 8. Janeiro de 1988.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

sexta-feira, 14 de maio de 2010

KANT


Vida e Obras

Immanuel Kant nasceu, estudou, lecionou e morreu em Koenigsberg. Jamais deixou essa grande cidade da Prússia Oriental, cidade universitária e também centro comercial muito ativo para onde afluíam homens de nacionalidade diversa: poloneses, ingleses, holandeses. A vida de Kant foi austera (e regular como um relógio). Levantava-se às 5 horas da manhã, fosse inverno ou verão, deitava-se todas as noites às dez horas e seguia o mesmo itinerário para ir de sua casa à Universidade. Duas circunstâncias fizeram-no perder a hora: a publicação do Contrato Social de Rosseau, em 1762, e a notícia da vitória francesa em Valmy, em 1792. Segundo Fichte, Kant foi "a razão pura encarnada".

Kant sofreu duas influências contraditórias: a influência do pietismo, protestantismo luterano de tendência mística e pessimista (que põe em relevo o poder do pecado e a necessidade de regeneração), que foi a religião da mãe de Kant e de vários de seus mestres, e a influência do racionalismo: o de Leibnitz, que Wolf ensinara brilhantemente, e o da Aufklärung (a Universidade de Koenigsberg mantinha relações com a Academia Real de Berlim, tomada pelas novas idéias). Acrescentemos a literatura de Hume que "despertou Kant de seu sono dogmático" e a literatura de Russeau, que o sensibilizou em relação do poder interior da consciência moral.

A primeira obra importante de Immanuel Kant - assim como uma das últimas, o Ensaio sobre o mal radical - consagra-o ao problema do mal: o Ensaio para introduzir em filosofia a noção de grandeza negativa (1763) opõe-se ao otimismo de Leibnitz, herdeiro do otimismo dos escoláticos, assim como do da Aufklärung. O mal não é a simples "privatio bone", mas o objeto muito positivo de uma liberdade malfazeja. Após uma obra em que Kant critica as ilusões de "visionário" de Swedenborg (que pretende tudo saber sobre o além), segue-se a Dissertação de 1770, que vale a seu autor a nomeação para o cargo de professor titular (professor "ordinário", como se diz nas universidades alemãs).


Nela, Kant distingue o conhecimento sensível (que abrange as instituições sensíveis) e o conhecimento inteligível (que trata das idéias metafísicas). Em seguida, surgem as grandes obras da maturidade, onde o criticismo kantiano é exposto. Em 1781, temos a Crítica da Razão Pura, cuja segunda edição, em 1787, explicará suas intenções "críticas" (um estudo sobre os limites do conhecimento). Os prolegômenos a toda metafísica futura (1783) estão para a Crítica da Razão Pura assim como a Investigação sobre o entendimento de Hume está para o Tratado da Natureza Humana: uma simplificação brilhante para o uso de um público mais amplo. A Crítica da Razão Pura explica essencialmente porque as metafísicas são voltadas ao fracasso e porque a razão humana é impotente para conhecer o fundo das coisas. A moral de Kant é exposta nas obras que se seguem: o Fundamento da Metafísica dos Costumes (1785) e a Crítica da Razão Prática (1788). Finalmente, a Crítica do Juízo (1790) trata das noções de beleza (e da arte) e de finalidade, buscando, desse modo, uma passagem que una o mundo da natureza, submetido à necessidade, ao mundo moral onde reina a liberdade.

Kant encontrara proteção e admiração em Frederico II. Seu sucessor, Frederico-Guilherme II, menos independente dos meios devotos, inquietou-se com a obra publicada por Kant em 1793 e que, apesar do título, era profundamente espiritualista e anti-Aufklärung: A religião nos limites da simples razão. Ele fez com que Kant se obrigasse a nunca mais escrever sobre religião, "como súdito fiel de Sua Majestade". Kant, por mais inimigo que fosse da restrição mental, achou que essa promessa só o obrigaria durante o reinado desse príncipe! E, após o advento de Frederico-Guilherme III, não hesitou em tratar, no Conflito das Faculdades (1798), do problema das relações entre a religião natural e a religião revelada! Dentre suas últimas obras citamos A doutrina do direito, A doutrina da virtude e seu Ensaio filosófico sobre a paz perpétua (1795).
A Ciência e a Metafísica

O método de Immanuel Kant é a "crítica", isto é, a análise reflexiva. Consiste em remontar do conhecimento às condições que o tornam eventualmente legítimo. Em nenhum momento Kant duvida da verdade da física de Newton, assim como do valor das regras morais que sua mãe e seus mestres lhe haviam ensinado. Não estão, todos os bons espíritos, de acordo quanto à verdade das leis de Newton? Do mesmo modo todos concordam que é preciso ser justo, que a coragem vale mais do que do que a covardia, que não se deve mentir, etc... As verdades da ciência newtoniana, assim como as verdades morais, são necessárias (não podem não ser) e universais (valem para todos os homens e em todos os tempos). Mas, sobre que se fundam tais verdades? Em que condições são elas racionalmente justificadas? Em compensação, as verdades da metafísica são objeto de incessantes discussões. Os maiores pensadores estão em desacordo quanto às proposições da metafísica. Por que esse fracasso?

Os juízos rigorosamente verdadeiros, isto é, necessários e universais, são a priori, isto é independentes dos azares da experiência, sempre particular e contigente. À primeira vista, parece evidente que esses juízos a priori são juízos analíticos. Juízo analítico é aquele cujo predicado está contido no sujeito. Um triângulo é uma figura de três ângulos: basta-me analisar a própria definição desse termo para dizê-lo. Em compensação, os juízos sintéticos, aqueles cujo atributo enriquece o sujeito (por exemplo: esta régua é verde), são naturalmente a posteriori; só sei que a régua é verde porque a vi. Eis um conhecimento sintético a posteirori que nada tem de necessário (pois sei que a régua poderia não ser verde) nem de universal (pois todas as réguas não são verdes).

Entretanto, também existem (este enigma é o ponto de partida de Kant) juízos que são, ao mesmo tempo, sintéticos e a priori! Por exemplo:a soma dos ângulos de um triângulo equivale a dois retos. Eis um juízo sintético (o valor dessa soma de ângulos acrescenta algo à idéia de triângulo) que, no entanto, é a priori. De fato eu não tenho necessidade de uma constatação experimental para conhecer essa propriedade. Tomo conhecimento dela sem ter necessidade de medir os ângulos com um transferidor. Faço-o por intermédio de uma demonstração rigorosa. Também em física, eu digo que o aquecimento da água é a causa necessária de sua ebulição (se não houvesse aí senão uma constatação empírica, como acreditou Hume, toda ciência, enquanto verdade necessária e universal, estaria anulada). Como se explica que tais juízos sintéticos e a priori sejam possíveis?

Eu demonstro o valor da soma dos ângulos do triângulo fazendo uma construção no espaço. Mas por que a demonstração se opera tão bem em minha folha de papel quanto no quadro negro... ou quanto no solo em que Sócrates traçava figuras geométricas para um escravo? É porque o espaço, assim como o tempo, é um quadro que faz parte da própria estrutura de meu espírito. O espaço e o tempo são quadros a priori, necessários e universais de minha percepção (o que Kant mostra na primeira parte da Crítica da Razão Pura, denominada Estética transcendental. Estética significa teoria da percepção, enquanto transcendental significa a priori, isto é, simultaneamente anterior à experiência e condição da experiência). O espaço e o tempo não são, para mim, aquisições da experiência. São quadros a priori de meu espírito, nos quais a experiência vem se depositar. Eis por que as construções espaciais do geômetra, por mais sintéticas que sejam, são a priori, necessárias e universais. Mas o caso da física é mais complexo. Aqui, eu falo não só do quadro a priori da experiência, mas, ainda, dos próprios fenômenos que nela ocorrem. Para dizer que o calor faz ferver a água, é preciso que eu constate. Como, então, os juízos do físico podem ser a priori, necessários e universais?

É porque, responde Kant, as regras, as categorias, pelas quais unificamos os fenômenos esparsos na experiência, são exigências a priori do nosso espírito. Os fenômenos, eles próprios, são dados a posteriori, mas o espírito possui, antes de toda experiência concreta, uma exigência de unificação dos fenômenos entre si, uma exigência de explicação por meio de causas e efeitos. Essas categorias são necessárias e universais. O próprio Hume, ao pretender que o hábito é a causa de nossa crença na causalidade, não emprega necessariamente a categoria a priori de causa na crítica que nos oferece? "Todas as intuições sensíveis estão submetidas às categorias como às únicas condições sob as quais a diversidade da intuição pode unificar-se em uma consciência". Assim sendo, a experiência nos fornece a matéria de nosso conhecimento, mas é nosso espírito que, por um lado, dispõe a experiência em seu quadro espacio-temporal (o que Kant mostrará na Estética transcendental) e, por outro, imprime-lhe ordem e coerência por intermédio de suas categorias (o que Kant mostra na Analítica transcendental). Aquilo a que denominamos experiência não é algo que o espírito, tal como cera mole, receberia passivamente. É o próprio espírito que, graças às suas estruturas a priori, constrói a ordem do universo. Tudo o que nos aparece bem relacionado na natureza, foi relacionado pelo espírito humano. É a isto que Kant chama de sua revolução copernicana. Não é o Sol, dissera Copérnico, que gira em torno da Terra, mas é esta que gira em torno daquele. O conhecimento, diz Kant, não é o reflexo do objeto exterior. É o próprio espírito humano que constrói - com os dados do conhecimento sensível - o objeto do seu saber.

Na terceira parte de sua Crítica da Razão Pura, na dialética transcendental, Kant se interroga sobre o valor do conhecimento metafísico. As análises precedentes, ao fundamentar solidamente o conhecimento, limitam o seu alcance. O que é fundamentado é o conhecimento científico, que se limita a por em ordem, graças às categorias, os materiais que lhe são fornecidos pela intuição sensível.

No entanto, diz Immanuel Kant, é por isso que não conhecemos o fundo das coisas. Só conhecemos o mundo refratado através dos quadros subjetivos do espaço e do tempo. Só conhecemos os fenômenos e não as coisas em si ou noumenos. As únicas intuições de que dispomos são as intuições sensíveis. Sem as categorias, as intuições sensíveis seriam "cegas", isto é, desordenadas e confusas, mas sem as intuições sensíveis concretas as categorias seriam "vazias", isto é, não teriam nada para unificar. Pretender como Platão, Descartes ou Spinoza que a razão humana tem intuições fora e acima do mundo sensível, é passar por "visionário" e se iludir com quimeras: "A pomba ligeira, que em seu vôo livre fende os ares de cuja resistência se ressente, poderia imaginar que voaria ainda melhor no vácuo. Foi assim que Platão se aventurou nas asas das idéias, nos espaços vazios da razão pura. Não se apercebia que, apesar de todos os seus esforços, não abria nenhum caminho, uma vez que não tinha ponto de apoio em que pudesse aplicar suas forças".

Entretanto, a razão não deixa de construir sistemas metafísicos porque sua vocação própria é buscar unificar incessantemente, mesmo além de toda experiência possível. Ela inventa o mito de uma "alma-substância" porque supõe realizada a unificação completa dos meus estados d'alma no tempo e o mito de um Deus criador porque busca um fundamento do mundo que seja a unificação total do que se passa neste mundo... Mas privada de qualquer ponto de apoio na experiência, a razão, como louca, perde-se nas antinomias, demonstrando, contrária e favoravelmente, tanto a tese quanto a antítese (por exemplo: o universo tem um começo? Sim pois o infinito para trás é impossível, daí a necessidade de um ponto de partida. Não, pois eu sempre posso me perguntar: que havia antes do começo do universo?). Enquanto o cientista faz um uso legítimo da causalidade, que ele emprega para unificar fenômenos dados na experiência (aquecimento e ebulição), o metafísico abusa da causalidade na medida em que se afasta deliberadamente da experiência concreta (quando imagino um Deus como causa do mundo, afasto-me da experiência, pois so o mundo é objeto de minha experiência). O princípio da causalidade, convite à descoberta, não deve servir de permissão para inventar.