Pesquisar este blog

terça-feira, 20 de abril de 2010

Piaget e a consciência moral

RESUMO

Este artigo apresenta os principais resultados de uma pesquisa sobre a teoria da moral de Jean Piaget. No estudo de seus textos sobre a moral, utilizamos o método da análise estrutural. Essa análise possibilitou-nos descobrir em Recherche o seu plano inicial de pesquisa e propor uma interpretação original do significado de seu livro O julgamento moral na criança. Além disso, constatamos que ele buscou traçar o caminho que conduz o ser humano da anomia à autonomia moral. Esses resultados permitiram explicar por que a sua teoria da moral, assim como a sua teoria do conhecimento, pode ser compreendida como um kantismo evolutivo.

Piaget e a consciência moral

É verdade que Piaget dedicou a sua vida, principalmente, a responder à questão de como é possível ao homem alcançar o conhecimento (Ramozzi-Chiarottino, 1972). Mas, quando consideramos o conjunto de sua obra, podemos constatar também que ele jamais deixou de escrever sobre a questão moral, ainda que suas idéias sobre esse tema estejam dispersas e, não raras vezes, em textos insuspeitos.

Em nosso estudo sobre a moral piagetiana, partimos da afirmação de que as idéias de Piaget sobre a moralidade são inseparáveis de seu projeto epistemológico (Ducret, 1990; Freitag, 1992; Vidal, 1994). Neste artigo, apresentamos os principais resultados desse estudo: o projeto do jovem Piaget, por que ele escreveu O julgamento moral na criança e aquilo que de seu projeto inicial sobre a moral foi realizado. Além disso, explicamos por que a sua teoria sobre a moral, assim como a sua teoria do conhecimento, pode ser entendida como uma espécie de kantismo evolutivo (Piaget, 1959; Ramozzi-Chiarottino, 1984).

Estamos convencidos de que, para se compreender a obra de grandes pensadores, é preciso considerar-se o conjunto da obra e não apenas um ou outro texto ou aspecto isolado. Por essa razão retomamos a análise estrutural realizada por Ramozzi-Chiarottino (1972) e utilizamos o mesmo método para a análise dos textos escritos por Piaget sobre a moral.

Esse método requer que se estude a obra a partir de sua lógica interna. Para descobrir essa lógica, o pesquisador deve responder à seguinte questão: qual foi a intenção do autor ao planejar a sua obra? É necessário identificar e analisar os seus conceitos a fim de se encontrar uma resposta a essa pergunta. O principal objetivo de nosso estudo foi, justamente, demonstrar qual foi a intenção de Piaget no que diz respeito à moral.

Os principais resultados de nosso estudo sobre a moral piagetiana foram os seguintes: 1- a descoberta do projeto de Jean Piaget; 2- por que ele escreveu O julgamento moral da criança e 3- o caminho a ser percorrido pelo ser humano da anomia à conquista da consciência moral autônoma.

O Projeto do Jovem Piaget

O livro publicado por Piaget (1918) quando ele era ainda muito jovem foi tomado por alguns comentadores de sua obra como um texto autobiográfico. Nós entendemos, porém, que Recherche é apenas em parte, autobiográfico. Na última parte desse livro, Piaget (1918) propõe um sistema que deveria ser entendido - diz ele - como "um programa de pesquisas" (p. 148).

Embora ele tenha renunciado à reflexão solitária e decidido assentar o seu "edifício" no campo da ciência, isso não significa que ele tenha abandonado as idéias capitais de seu sistema (Ducret, 1984). Prova disso é que, muitos anos mais tarde, Piaget (1976) reconhece, ainda, nessas páginas escritas na juventude, "um esquema antecipador" de suas pesquisas ulteriores:

(...) já estava claro para mim que o estado de equilíbrio do todo e da parte correspondia a estados de consciência de natureza normativa: necessidade lógica ou obrigação moral, por oposição às formas inferiores de equilíbrio que caracterizam os estados de consciência não-normativos (...). (p. 7)

Segundo Ramozzi-Chiarottino (1998), nós podemos identificar em Recherche todos os elementos da teoria do conhecimento que Piaget construiu ao longo de sua vida: uma teoria inspirada no equilíbrio biológico e cujas leis que regem o pensamento são aquelas da lógica clássica. Mas uma leitura atenta de Recherche nos mostra também que ele aspirava propor uma teoria sobre a moral, conforme constatamos, por exemplo, na seguinte passagem: "Ora, eu pretendo que, precisando suficientemente a evolução biológica, se chega a fundar uma moral da obrigação e uma moral única, sem tergiversação possível" (Piaget, 1918, p. 174). Nós podemos perguntar o que aconteceu com essa intenção de Piaget, presente em Recherche.

Por que Piaget Escreveu o Julgamento Moral na Criança?

Sendo Piaget um cientista, ele acreditava que o sistema exposto em Recherche deveria ser submetido a um controle experimental. Assim sendo, O julgamento moral na criança pode ser entendido como a primeira tentativa de submeter as suas idéias sobre a moral a uma verificação empírica.

Piaget (1932/1992) atenta para o fato de que havia um acordo entre autores de diferentes orientações teóricas quanto ao fato de que o respeito é o sentimento fundamental da vida moral. O mesmo não ocorria, contudo, quanto as relações entre o respeito e a lei moral. Em vários textos, ele contrapõe, de um lado, Immanuel Kant e Émile Durkheim e, de outro, Pierre Bovet: para Kant e Durkheim, o respeito é conseqüência da lei moral, ou seja, é na medida em que o indivíduo obedece a lei moral que ele é respeitado; segundo Bovet, o respeito às pessoas é condição prévia da lei moral, visto que o indivíduo atinge o respeito à Lei através das pessoas. Piaget procura dirimir as divergências em torno dessa questão submetendo-a ao método genético. Nós podemos compreender, então, o seu livro O julgamento moral na criança como um estudo psicogenético sobre as relações entre o respeito e a lei moral.

No que tange a essas relações, Piaget (1928, 1930, 1932/1992) toma o partido de Bovet (1912) e atribui, explicitamente, a origem de suas pesquisas ao artigo Les conditions de l'obligation de conscience. Bovet (1910), em um trabalho anterior, já revelara sua intenção de aplicar o método da psicologia experimental ao estudo dos sentimentos morais: "Tratar-se-ia de mostrar que os fatos concretos que estão na base das construções da ética podem ser objeto de um estudo conduzido seguindo os métodos da psicologia científica." (p. 305)

O seu artigo Les conditions de l'obligation de conscience faz parte desse projeto. Bovet (1912) procurou estabelecer quais são as condições necessárias para que o sujeito sinta que deve (ou não deve) agir de uma determinada maneira. Segundo ele, duas condições são necessárias e juntas, suficientes para que surja a consciência de obrigação no sujeito: 1) que uma consigne seja dada; 2) que essa consigne seja aceita por aquele que a recebe. Ele definiu uma consigne como uma ordem ou proibição: 1) dada sem indicação precisa nem de motivos nem de sanções; 2) válida até novo aviso; 3) que diz respeito a um ato subordinado a circunstâncias exteriores que devem ser reconhecidas pelo sujeito.2 Para que uma consigne seja aceita, o seu autor deve ter prestígio ou autoridade aos olhos daquele que a recebe, ou seja, deve existir uma relação de respeito.

Poucos anos antes, Ferenczi (1909/1991) escrevera algumas belas linhas sobre por que as crianças obedecem a seus pais. Segundo ele, é porque há uma relação de amor entre a criança e seus pais que ela os obedece de bom grado.

Poder-se-ia esperar que elas considerassem as exigências de seus pais visando orientar seu comportamento e atos como uma coerção exterior, portanto uma fonte de desprazer. Com efeito, é esse o caso nos primeiros anos de vida, quando a criança só conhece satisfações auto-eróticas. Mas o aparecimento do amor objetal modifica a situação por completo. Os objetos de amor são introjetados: são mentalmente integrados ao ego. A criança ama seus pais, ou seja, identifica-se com eles, sobretudo com o do mesmo sexo ... Nessas condições, a obediência deixa de ser um desprazer... Naturalmente, essa obediência espontânea tem um limite que varia segundo os indivíduos e, quando esse limite é transposto pelas exigências dos pais, quando a pílula amarga da coerção não está envolta na doçura do amor, a criança retira prematuramente sua libido dos pais, o que pode levar a uma perturbação brutal do desenvolvimento psíquico. (Ferenczi, 1909/1991, p. 101)

Inspirado nessa idéia, Bovet (1912) define o respeito como "...uma relação sui generis de natureza afetiva, na qual o amor e o medo são, em doses diversas, os constituintes característicos". (p. 118)

Piaget (1932/1992) incorpora a concepção de Bovet (1912) e, através deste, também a idéia de Ferenczi (1909/1991). No entanto, ele percebe uma limitação na tese de Bovet: "como, se todo dever emana de personalidades superiores a ela, a criança adquirirá uma consciência autônoma?" (Piaget, 1932/1992, p. 308). Em suas pesquisas, ele busca uma resposta a essa pergunta.

Piaget (1932/1992) encontra no jogo de regras um terreno propício para o estudo da questão de como é possível a aquisição de uma consciência autônoma. As regras do jogo, como as regras morais - diz ele - "... se transmitem de geração em geração e se mantêm unicamente graças ao respeito que os indivíduos têm por elas" (p. 2). Todavia, há uma diferença essencial: enquanto as normas morais são impostas pelos adultos, as regras do jogo, pelo contrário, são elaboradas apenas pelas crianças. Para Piaget (1932/1992), o fato de que essas regras não têm um conteúdo moral propriamente dito não era relevante, visto que, neste ponto, ele estava inteiramente de acordo com Bovet (1912): "Com efeito, como Bovet mesmo, aliás, reconheceu sem cessar ... os deveres não são obrigatórios por causa de seu conteúdo, mas pelo fato de emanarem de indivíduos respeitados" (Piaget, 1932/1992, p. 311).

Em contrapartida, se o respeito é um sentimento que se desenvolve na criança em função da interação que ela estabelece com o seu meio social, interessava a Piaget (1932/1992) o tipo de relação social estabelecida. Ele distingue dois tipos de relação social: a coação social e a cooperação. Ele define a coação social como "... toda relação entre dois ou n indivíduos na qual intervém um elemento de autoridade ou de prestígio" e cooperação como "... toda relação entre dois ou n indivíduos iguais ou que acreditam ser iguais, ou seja, toda relação social na qual não intervém nenhum elemento de autoridade ou de prestígio" (Piaget, 1928/1977, pp. 225-226). Ele encontra na comunidade de pequenos jogadores - na qual a influência do mundo adulto é bastante reduzida - uma coletividade de iguais.

Os resultados de suas pesquisas sobre as regras do jogo levam-no a sustentar a tese kantiana da existência de duas morais: a moral da heteronomia e a moral da autonomia. Além disso, Piaget (1932/1992) levanta a hipótese de que existiria um processo evolutivo em direção à segunda. Essa hipótese foi corroborada mediante o estudo dos efeitos da coação social e da cooperação na formação da consciência moral do sujeito. O seu estudo sobre a mentira visou estudar os efeitos da coação social sobre a consciência moral da criança e seus resultados foram controlados com as pesquisas sobre os desajeitamentos e o roubo (capítulo II). O principal objetivo das pesquisas realizadas sobre a noção de justiça na criança foi estudar os efeitos da cooperação entre iguais (capítulo III).

Da Anomia à Autonomia Moral

Desde antes da publicação de O julgamento moral na criança, Piaget (1930) defende a idéia da existência de um paralelismo entre o desenvolvimento da lógica e da moral no ser humano. Posteriormente, no curso que ministrou na Sorbonne, Piaget (1954) estende esse paralelismo ao mostrar que as construções cognitivas caminham pari passu com a constituição dos sentimentos. Em outras palavras, ele traça um paralelo entre o desenvolvimento intelectual e o desenvolvimento da afetividade e mostra que a emergência dos sentimentos morais faz parte de um processo mais amplo: o desenvolvimento da afetividade. Já em O julgamento moral na criança nós encontramos a idéia de que as relações afetivas que se estabecem entre os seres humanos estão na origem da ação moral: "... a condição primeira da vida moral (...) é a necessidade de afeição recíproca" (Piaget, 1932/1992, p. 138). Assim como ele explicou por qual caminho o organismo humano constrói as estruturas mentais na interação incessante que estabelece com o meio físico e social, ele buscou explicar também o percurso que conduz o ser humano da anomia à autonomia moral.

Em um primeiro momento, a regra confunde-se com o hábito: há regularidades, mas a criança não as sente como obrigatórias, ou seja, não há normas propriamente ditas. Em função disso, Piaget (1932/1992) chamou de anomia a esse período do desenvolvimento moral. Não há consciência de obrigação nesse período, porque é somente por volta de 1½ - 2 anos que ocorre a primeira diferenciação eu-outrem, condição necessária para que as trocas inter-individuais, isto é, as interações sociais propriamente ditas, sejam possíveis. A idéia de Bovet (1912) foi corroborada pelo estudo sobre as regras do jogo: para que haja sentimento de obrigação é necessário que se estabeleça uma relação entre, no mínimo, dois indivíduos.

A originalidade e o interesse dessa tese [de Bovet] consistem em definir o sentimento de obrigação não do lado apenas do sujeito, mas no interior de uma relação inter-individual. Dito de outra maneira, o sentimento de obrigação não somente tem origem em uma tal relação (como em Baldwin): ele a implica constantemente. (Piaget, 1954, p. 527)

Segundo Piaget (1941/1977), no ponto de partida, o respeito é "... a expressão do valor atribuído aos indivíduos, por oposição às coisas ou aos serviços" (p. 127) e ele define o valor como "uma troca afetiva com o exterior, objeto ou pessoa" (Piaget, 1954, p.355).

O respeito unilateral é a primeira forma de respeito que aparece no desenvolvimento do ser humano. Esse sentimento constitui-se nas relações de coação social, cujo protótipo é a relação estabelecida entre a criança e seus pais ou com outros adultos significativos para ela. A obediência tem origem nesse tipo de relação. A criança atribui um valor absoluto às normas, opiniões e valores desses adultos. Ela imita os exemplos que eles lhe dão e adota a sua escala de valores. Todavia, Piaget (1932/1992) constatou que a obediência conduz a uma atitude paradoxal: o sujeito considera a regra como sagrada e imutável, mas, na prática, ele não a segue. Ele denominou "realismo moral" a tendência da criança (e do adulto que permanece criança) a considerar os deveres como exteriores ao indivíduo, a seguir as normas ad litteram, sem compreender o seu espírito, e a julgar a gravidade de uma falta em função do resultado do ato ou do caráter material do ato e não em função da intenção do agente. O realismo moral é produzido pela conjunção do egocentrismo com a coação social.

Vários comentadores da teoria piagetiana não entenderam que, do ponto de vista do desenvolvimento moral, o respeito unilateral é essencial; outros, confundiram respeito unilateral e desrespeito. Mas por que o respeito unilateral é fundamental para o desenvolvimento moral do ser humano? Porque é "no quadro preparado" pelo respeito unilateral que formas superiores de respeito se tornam possíveis. Em outras palavras, o respeito unilateral é condição necessária (mas não suficiente) para que se construam outras formas de respeito. Além disso, se os adultos impõem à criança certos valores como devendo ser respeitados, ela pode compartilhar os valores de sua cultura e, mais tarde, organizar a sua própria tábua de valores.

As pesquisas que Piaget (1932/1992) realizou sobre os efeitos da cooperação entre iguais sobre a consciência moral da criança mostraram-lhe que, graças a esse tipo de relação social, um outro tipo de respeito pode constituir-se: o respeito mútuo. Há respeito mútuo quando os indivíduos se atribuem reciprocamente valores equivalentes. Em um primeiro momento, esse tipo de relação é possível entre aqueles que compartilham uma mesma escala de valores (as classes de co-valorisant).

A relação de cooperação impõe apenas a norma de reciprocidade que obriga cada um a se colocar mentalmente no lugar do outro. Em função disso, a atitude da criança em relação às regras muda: 1) a regra não é mais sagrada e imutável; ela torna-se o produto contingente da vontade coletiva; 2) a criança compreende a diferença entre uma regra e uma lei e que nem sempre a regra é justa; 3) ela admite, então, que a modificação da regra não significa, necessariamente, uma transgressão. Dito de outra forma, o sujeito descobre a sua capacidade de instituir normas. Está dado o primeiro passo em direção à conquista da consciência moral autônoma.

Contudo, se a reciprocidade fosse possível apenas entre os indivíduos que compartilham os mesmos gostos, opiniões e valores, o ser humano ficaria restrito às classes de co-valorisants. Eis por que Piaget (1941/1977) estabelece a diferença entre a reciprocidade espontânea - típica das relações de amizade - e a reciprocidade normativa, na qual a substituição recíproca dos pontos de vista torna-se uma obrigação. Em suas pesquisas empíricas, Piaget (1932/1992) não foi além das relações de simpatia, regidas pela reciprocidade espontânea, mas já nesse momento ele deixa claro que tais relações estão fora da esfera moral: "quanto à simpatia, não reveste, aos olhos da consciência, nada de moral por si mesma: não basta ser sensível para ser bom" (p. 315).

No entanto, ele considera a reciprocidade espontânea condição necessária para que a reciprocidade normativa de ordem moral se torne possível. Por que a reciprocidade se torna obrigatória? Porque "o respeito mútuo implica a necessidade da não-contradição moral: não se pode, ao mesmo tempo, valorizar o seu parceiro e agir de modo a ser desvalorizado por ele" (Piaget, 1954, p. 535). Eis aquilo que Piaget (1944/1977) considera "a verdade essencial da tese kantiana":

...Uma norma moral adotada por um indivíduo em relação a um outro não pode ser contraditória em relação àquelas que ele aplica a um terceiro, etc, nem em relação àquelas que ele gostaria que se observasse em relação a ele próprio. Tal é mesmo a significação essencial do universal moral: não é necessariamente a regra 'geral' (sabe-se, aliás, que em lógica o universal e o geral, de modo algum, coincidem), mas a coerência interna das condutas, a reciprocidade. (Piaget, 1944/1977, p. 199)

Aquele que não compreende o princípio de não-contradição não é, portanto, capaz de ter um comportamento ético, visto que ele não tem as condições a priori para sê-lo. Segundo a teoria piagetiana, esse princípio é construído graças as trocas que o sujeito estabelece com o meio e, do ponto de vista psicogenético, ele aparece, ao mesmo tempo, no pensamento e na ação: o primeiro torna-se lógico e a segunda, moral.

A substituição recíproca de pontos de vista é a condição que define a reciprocidade normativa de ordem moral. Respeitar o outro consiste, então, em atribuir à sua escala de valores um valor equivalente ao da sua própria escala. Isso não significa, absolutamente, adotar a escala de valores do outro, pois, nesse caso, não importa o conteúdo dos valores ou convicções de cada um, mas sim o fato de se ter uma escala de valores. A própria pessoa, então, reveste-se de um valor moral (Piaget, 1941/1977).

Graças a constituição da vontade, o indivíduo pode superar seus desejos imediatos e a conservação dos valores propriamente dita torna-se possível. O exercício da vontade manifesta-se no conflito entre duas tendências, por exemplo, como no caso em que se vacila entre um prazer tentador e um dever. Quando o dever, momentaneamente, esmorece diante do desejo, a vontade restabelece a ordem dos valores. Dessa forma, é possível que a tendência, inicialmente, mais fraca torne-se a mais forte. Piaget (1954, 1964/1989) comparou a vontade à operação lógica. Segundo ele, a vontade equivale, no plano afetivo, às operações, no plano cognitivo: a capacidade operatória liberta o ser humano das ilusões perceptivas; a vontade, dos desejos e interesses imediatos, o que lhe permite estabelecer fins prioritários a longo prazo, ou seja, construir um projeto de vida. Mais tarde, o pensamento formal abre novas possibilidades: ao mesmo tempo que o sujeito se torna capaz de raciocinar sobre hipóteses, os fins de sua ação ultrapassam as fronteiras do real, dando origem a Valores (ideais), tais como a igualdade, a justiça, a solidariedade, a liberdade...

A capacidade de ser normativo, a constituição da vontade e a construção de Valores possibilitam a formação completa da personalidade. Podemos falar em personalidade, no sentido piagetiano, a partir do momento em que o indivíduo elabora um projeto de vida, quando ele incarna um ideal. A personalidade é um instrumento, ao mesmo tempo, de autodisciplina e de cooperação com os outros: o eu torna-se personalidade, na medida em que renuncia a si mesmo, inserindo o seu ponto de vista entre os outros, e se curva às normas da reciprocidade.

Segundo Piaget (1933/1977), a personalidade autônoma é "o produto mais refinado da socialização" (p. 245). Por quê? Porque - entendemos nós - é somente em uma relação de respeito mútuo entre personalidades autônomas que é possível, simultaneamente, a diversidade e a igualdade. Cabe lembrar que ele sempre esteve preocupado com as possibilidades da espécie humana e não com a concretização dessas possibilidades. Da mesma forma que nem todo o indivíduo atinge o pensamento formal, nem todos chegam a formar uma personalidade autônoma; pelo contrário, "... a consciência adulta autônoma é um produto social recente e excepcional" (Piaget, 1944/1977, p. 186).



Considerações Finais

Ramozzi-Chiarottino (1984) chamou atenção para o fato de que o próprio Piaget (1959) considerava a sua teoria do conhecimento como um kantismo evolutivo. Os resultados de nosso estudo indicam que também a sua teoria sobre a moral pode ser entendida como um kantismo evolutivo. Para Kant, todo ser humano é capaz de agir eticamente; para Piaget, todo o ser humano pode tornar-se capaz de ação moral, graças às trocas que estabelece com o meio.

Com efeito, é essencial compreender que, se a criança traz consigo todos os elementos necessários à elaboração de uma consciência moral ou 'razão prática', como de uma consciência intelectual ou razão, simplesmente, nem uma nem outra são dadas prontas no ponto de partida da evolução mental e uma e outra se elaboram em estreita conexão com o meio social: as relações da criança com os indivíduos dos quais ela depende serão, portanto, propriamente falando, formadoras, e não se limitarão, como geralmente se acredita, a exercer influências mais ou menos profundas, mas de alguma maneira acidentais em relação à própria construção das realidades morais elementares. (Piaget, 1972/1988, p. 95)

No sistema de Kant, a problemática moral é essencial. Para o filósofo, parece que a sua monumental Crítica da Razão Pura era apenas um trabalho preliminar.

Em vez de todas as considerações, cujo competente desenvolvimento constitui, de fato, a dignidade própria da filosofia, ocupar-nos-emos agora de tarefa menos brilhante, mas não menos meritória, que é a de aplainar e consolidar o terreno para o majestoso edifício da moral, onde se encontra toda a espécie de galerias de toupeira, que a razão, em busca de tesouros, escavou sem proveito, apesar de suas boas intenções e que ameaçam a solidez dessa construção. (Kant, 1787/1989, p. 312)

Piaget, parece-nos, planejara seguir os passos de Kant. Em Recherche, ele escreve que Sébastien (que é ele mesmo) "... acreditara ser possível uma filosofia do valor puro, um pouco como aquela da Razão prática, e ele a tinha reservado para coroar o seu edifício" (Piaget, 1918, p. 100). Ou seja, após explicar como é possível ao homem alcançar o conhecimento, ele estaria apto a propor a sua ética. Essa era a intenção de Piaget.

Segundo Ramozzi-Chiarottino (1998), a teoria do conhecimento esboçada em Recherche tornou-se, pouco a pouco, uma teoria científica sobre o psiquismo humano quando este busca explicar o mundo. Além de mostrar por qual caminho o organismo humano constrói as estruturas mentais - estruturas orgânicas específicas para o ato do conhecimento - na interação com o meio físico e social, Piaget construiu modelos abstratos para explicar o funcionamento dessas estruturas: a lógica operatória e a implicação significante. "Em um primeiro momento, Piaget diz que toma a lógica como um modelo descritivo daquilo que ele observou. Em um segundo momento, ele criará um modelo explicativo do raciocínio das crianças, que obedece às regras da lógica,..." (Ramozzi-Chiarottino, 1998, p. 337).

Em seu Essai sur la théorie des valeurs qualitatives en sociologie statique, Piaget (1941/1977) defende a utilização de "modelos abstratos" para exprimir em termos mais precisos a troca de valores, valendo-se de uma "axiomática de ordem logística" como ele o fizera no estudo do pensamento. Isso nos faz pensar que ele aspirou, além de explicar como a partir do mundo amoral da criança pequena é possível ao homem agir eticamente (Freitas, 1999), estender o domínio de aplicação dos modelos lógico-matemáticos e, dessa forma, talvez, criar uma teoria científica da consciência moral "sem tergiversação possível".

Referências

Bovet, P. (1910). La conscience de devoir dans l'introspection provoquée: Expériences sur la psychologie de la pensée. Archives de Psychologie, 9, 304-369.  

Bovet, P. (1912). Les conditions de l'obligation de conscience. L'année psychologique, XVIII, 55-120.  

Ducret, J-J. (1984). Jean Piaget: Genève: Droz. Savant et philosophe (vol. I e II).  

Ducret, J-J. (1990). Jean Piaget: Biographie et parcours intellectuel. Neuchâtel et Paris: Delachaux et Niestlé.  

Ferenczi, S. (1991). Transferência e introjeção (A. Cabral, Trad.). Em Obras completas (pp. 77-108). São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1909)  

Freitag, B. (1992). Itinerários de Antígona: A questão da moralidade. Campinas: Papirus.  

Freitas, L.B.L. (1999). Do mundo amoral à possibilidade de ação moral. Psicologia: Reflexão e Crítica, 12, 447-458.  

Kant, I. (1989). Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (Original publicado em 1787)  

Piaget, J. (1918). Recherche. Laussane: La Concode.  

Piaget, J. (1928). La règle morale chez l'enfant. Em Zweiter Sommerkurs für Psychologie in Luzern (pp. 32-45). Luzern: Stiftung Lucerna.  

Piaget, J. (1930). Le parallélisme entre la logique et la morale chez l'enfant. Em 9th International Congress of Psychology (pp. 339-340). Princeton: The Psychology Review Company.  

Piaget, J. (1930). Les procédés de l'éducation morale. Em Cinquième Congrès International d'Education Morale (pp. 182-219). Paris: Alcan.  

Piaget, J. (1954). Les relations entre l'intelligence et l'affectivité dans le développement de l'enfant. Bulletin de Psychologie, VII, 143-150, 346-361, 522-535, 699-701.  

Piaget, J. (1959). Les modèles abstraits sont-ils opposés aux interprétations psycho-physiologiques dans l'explication en psychologie?: Esquisse d'autobiographie intellectuelle. Bulletin de Psychologie, XIII(169), 7-13.  

Piaget, J. (1977). Essai sur la théorie des valeurs qualitatives en sociologie statique. Em Etudes sociologiques (pp. 100-142). Genève: Droz. (Original publicado em 1941)  

Piaget, J. (1977). Les relations entre la morale et le droit. Em Etudes sociologiques (pp. 172-202). Genève: Droz. (Original publicado em 1944)  

Piaget, J. (1977). L'individualité en histoire: L'individu et la formation de la raison. Em J. Piaget, Etudes sociologiques (pp. 240-282). Genève: Droz. (Original publicado em 1933)  

Piaget, J. (1977). Logique génétique et sociologie. Em J. Piaget, Etudes sociologiques (pp. 203-239). Genève: Droz. (Original publicado em 1928)  

Piaget, J. (1976). Autobiographie. Cahiers Vilfredo Pareto: Révue Européenne des Sciences Sociales, XIV(38-39), 1-43.  

Piaget, J. (1988). Où va l'éducation? Paris: Denoël/Gonthier. (Original publicado em 1972)  

Piaget, J. (1989). Six études de psychologie. Paris: Denoël/Gonthier. (Original publicado em 1964)  

Piaget, J. (1992). Le jugement moral chez l'enfant (7.ed.). Paris, PUF. (Original publicado em 1932)  

Ramozzi-Chiarottino, Z. (1972). Piaget: Modelo e estrutura. Rio de Janeiro: José Olympio.  

Ramozzi-Chiarottino, Z. (1984). Em busca do sentido da obra de Jean Piaget. São Paulo: Ática.  

Ramozzi-Chiarottino, Z. (1998). Piaget selon l'ordre des raisons. Bulletin de Psychologie, 51(3), 333-342.  

Vidal, F. (1994). Piaget before Piaget. Massachussetts/London: Harvard University Press.  



Nenhum comentário:

Postar um comentário